A natureza jurídica "sui generis" do membro da EIRELI

A natureza jurídica "sui generis" do membro da EIRELI

04/jun/2012

A legislação brasileira, ao tratar sobre o membro da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada apenas se refere a pessoa natural, deixando para a doutrina a questão de analisar qual a sua natureza jurídica.

Por Nadialice Francischini

Em 11 de julho de 2011 foi sancionada a Lei n. 12.441, que criou a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI. Esse novo tipo de pessoa jurídica caracteriza-se por possibilitar que uma única pessoa seja titular de 100% (cem por cento) do capital social, devidamente integralizado. Até então, aquele que queria exercer sozinho a atividade empresarial tinha que fazê-lo sob a forma de empresário individual ou arriscando-se com a figura do sócio "de palha" – aquele que tinha uma quota ou um percentual muito ínfimo no capital social.

Sendo a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada pessoa jurídica, devidamente constituída com a inscrição na Junta Comercial, há a separação patrimonial entre esta e a pessoa que a compõe, sem incorrer na confusão patrimonial do Empresário Individual.

Entretanto, a legislação brasileira, ao tratar sobre o membro da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada apenas se refere a pessoa natural, deixando para a doutrina a questão de analisar qual a sua natureza jurídica. Desta forma, resta a pergunta que motivou o presente artigo: o membro da EIRELI é sócio ou empresário segundo o ordenamento jurídico brasileiro?

Antes de responder a questão faz-se mister verificar o Projeto de Lei n. 4.605, de 2009, de autoria do Deputado Federal Marcos Montes, que motivou a criação dessa nova pessoa jurídica.

Na justificativa do mencionado Projeto de Lei a criação da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada tinha como objetivo atende a necessidade de regulamentar a sociedade unipessoal no Brasil. Para tanto, o projeto originalmente previa a inserção do artigo 985-A no Código Civil pátrio, ou seja, dentro da regulamentação jurídica de sociedade. (MONTES. 2011)

Essa orientação doutrinária seguia a construção da Sociedade de Responsabilidade Limitada com Único Sócio já regulamentado em diversos países, a exemplo da Comunidade Européia que trata do tema na Directiva 2009/102/CEE (2011). Essa norma determina que se aplique a esse tipo societário a mesma regulamentação que incide sobre todos os demais tipos societários, e o seu membro tem a natureza jurídica de sócio. Isso fica claro quando, observando o disposto no artigo 4º, depara-se com a previsão da existência dos órgãos societários, aqui representado pelo único sócio, mas que deve tomar as suas decisões de forma escrita.

Outro exemplo é a legislação francesa, que após a alteração do artigo 1.832 do Código Civil pela Lei n. 85.697/1985 passou a permitir a existência de sociedade formada por uma só pessoa, conforme se verifica abaixo:

Article 1832

La société est instituée par deux ou plusieurs personnes qui conviennent par un contrat d'affecter à une entreprise commune des biens ou leur industrie en vue de partager le bénéfice ou de profiter de l'économie qui pourra en résulter.

Elle peut être instituée, dans les cas prévus par la loi, par l'acte de volonté d'une seule personne.

Les associés s'engagent à contribuer aux pertes.

 

Entretanto, a despeito das intenções do Projeto de Lei, o legislador criou no ordenamento jurídico, através da Lei n. 12.441/2011, a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, não como um tipo novo de sociedade, mas sim como uma nova espécie de pessoa jurídica. Isso se verifica com a análise da modificação do artigo 44, do Código Civil, que dispõe sobre as pessoas jurídicas existentes no ordenamento pátrio, que consolidado passará a ter a seguinte redação:

Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado:

I - as associações;

II - as sociedades;

III - as fundações.

IV - as organizações religiosas;

V - os partidos políticos;

VI - empresa individual de responsabilidade limitada.

Ademais, os tipos de sociedade, sejam simples ou empresarial, existentes no ordenamento jurídico brasileiro estão regulados nos artigos 981 e seguintes do Código Civil, enquanto que a regulamentação da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada foi inserida no artigo 980-A, ou seja, fora do Título II do Livro II que regulamenta aquelas.

Além dessas análises, não se pode olvidar que a atual redação do artigo 981 do Código Civil pátrio não permite a existência no direito brasileiro de sociedade unipessoal. Nele está disposto que celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.

Verifica-se que é requisito de existência da sociedade a pluralidade de pessoas. Sem este não há sociedade. Neste sentido Fábio Ulhoa Coelho (2010, p. 174) explica que a legislação pátria "exige nas sociedades de forma geral a presença de pelo menos dois sócios".

Desta forma, o membro da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada não pode ser considerado sócio, pois esse novo tipo de pessoa jurídica não é uma sociedade.

Segundo o Alfredo de Assis Gonçalves Neto (2011) a regulamentação jurídica da EIRELI se assemelha ao tratamento atribuído ao Estabelecimento Mercantil Individual de Responsabilidade Limitada existente em Portugal desde 1986 – Decreto-Lei n. 248/86. Segundo a norma portuguesa (2011), o membro do EIRL é o comerciante, é ele quem exerce a atividade empresarial, com o diferencial é que a sua responsabilidade é limitada ao capital investido na atividade.

Contudo, no ordenamento brasileiro, o membro da EIRELI não pode ser considerado comerciante/empresário, pois este é quem exerce diretamente a atividade empresarial, quem se responsabiliza pelos riscos da atividade, na melhor inteligência do artigo 966 do Código Civil pátrio que dispõe que considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

Com a criação da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, esta passa a ter status de pessoa jurídica, com capacidade, direitos e deveres distintos da pessoa que o compõe. Ou seja, é a EIRELI, devidamente constituída e registrada na Junta Comercial, quem vai exercer a atividade empresarial e assumir o risco da atividade. O membro da pessoa jurídica não exerce a atividade, mas sim a pessoa jurídica.

Com base em todas essas observações, verifica-se que o membro da nova pessoa jurídica criada pela Lei n. 12.441/2011 não tem natureza jurídica nem de sócio, nem de empresário. Desta forma, somente resta concluir que este, no ordenamento brasileiro, tem natureza jurídica sui generis.

O que isso significa? Explica Maria Tereza de Queiroz Piacentini (2011) que a expressão latina "quer dizer ‘de seu próprio gênero’, ou seja, significa que algo (fato, situação, caso) é único no gênero, é original, peculiar, singular, excepcional, sem semelhança com outro’.

O membro da EIRELI é uma figura impar e original no ordenamento jurídico brasileiro, não se encaixando nem no conceito de sócio nem no conceito de empresário e tratado pela legislação apenas como pessoa natural.

 

REFERÊNCIAS

 

BRASIL. Código Civil Brasileiro – Lei n. 10.406/2002. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 12 jul. 2011.

 

______ Lei n. 12.441 de 11 de julho de 2011. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2011.

 

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: empresa comercial, empresários individuais, microempresas, sociedade empresárias, fundo de comércio. 33. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

 

COMUNIDADE EUROPÉIA. Directivia 2009/102/CEE. Disponível em: < https://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2009:258:0020:01:PT:HTML>. Acesso em: 16 jul. 2011.

 

FRANÇA. Code Civil. Disponível em: . Acesso em: 22 jul. 2011.

 

GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Empresa Individual é avanço da legislação brasileira. Disponível em: . Acesso em: 16 jul. 2011.

 

MONTES, Marcos. PL 4.605/2009. Disponível em: . Acesso em: 16 jul. 2011.

 

PIACENTINI, Maria Tereza de Queiroz. Latinismo. Disponível em: < https://www.kplus.com.br/materia.asp?co=146&rv=Gramatica>. Acesso em: 22 jul. 2011.

 

PORTUGAL. Decreto-Lei n. 248/86. Disponível em: . Acesso em: 16 jul. 2011.
 

Fonte: DireitoNet

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