Apelação Cível - Ação de adoção intuitu personae...

Apelação Cível - Ação de adoção intuitu personae - Não inscrição no cadastro de pretendentes à adoção - Preponderância do melhor interesse da criança

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE ADOÇÃO INTUITU PERSONAE - ENTREGA DA CRIANÇA LOGO APÓS O NASCIMENTO - GUARDA DEFINITIVA - AUSÊNCIA DE INDÍCIOS DE MÁ-FÉ - NÃO INSCRIÇÃO NO CADASTRO DE PRETENDENTES À ADOÇÃO - CRIANÇA COM 5 (CINCO) ANOS DE IDADE E CONVIVÊNCIA COM A ADOTANTE NO MESMO PERÍODO - VÍNCULOS SOCIOAFETIVOS COMPROVADOS - MITIGAÇÃO DA OBSERVÂNCIA RÍGIDA AO SUPRACITADO CADASTRO - PREPONDERÂNCIA DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA - PRIORIDADE ABSOLUTA - SENTENÇA QUE INDEFERIU A ADOÇÃO - RECURSO PROVIDO

- O cadastro de adoção se destina a dar maior agilidade e segurança ao processo de adoção, uma vez que permite averiguar previamente o cumprimento dos requisitos legais pelo adotante, bem como traçar um perfil em torno de suas expectativas. Evita influências outras, negativas ou não, que, por vezes, levam à sempre indesejada "adoção à brasileira".

- Todavia, deve-se ter em mente sempre o melhor interesse da criança. É certo que existem casos excepcionais, em que se mitiga a habilitação dos adotantes no competente cadastro para o deferimento do pedido de adoção, possibilitando a chamada adoção direta ou intuitu personae.

- Retirar uma criança com 5 (cinco) anos de idade do seio da família substituta, que hoje também é a sua, e privá-la, inclusive, da convivência com seus 2 (dois) irmãos biológicos, sob o pretexto de coibir a adoção direta, é medida extremamente prejudicial. O menor poderá ser exposto a grande instabilidade emocional, em face de uma brusca mudança.

- A retirada do infante da casa de sua guardiã após o transcurso de longo período de convivência e constatada a formação de fortes laços de afetividade, não se mostra recomendável, pois certamente resultará em traumas e frustrações para o menor, com prejuízo ao seu ideal desenvolvimento, inserido que está como verdadeiro membro daquele núcleo familiar.

Apelação Cível nº 1.0194.12.006162-8/002 - Comarca de Coronel Fabriciano - Apelante: E.A.P.O. - Apelado: N.E.A.S. - Interessado: N.O.S. - Relatora: Des.ª Hilda Maria Pôrto de Paula Teixeira da Costa

ACÓRDÃO

Vistos etc., acorda, em Turma, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em dar provimento ao recurso, com recomendação.

Belo Horizonte, 27 de janeiro de 2015. - Hilda Maria Pôrto de Paula Teixeira da Costa - Relatora.

NOTAS TAQUIGRÁFICAS

DES.ª HILDA MARIA PÔRTO DE PAULA TEIXEIRA DA COSTA - Trata-se de apelação cível interposta contra a sentença de f. 170/176, prolatada nos autos da ação de adoção do menor N.O.S, ajuizada por E.A.P.O. em face de N.E.A.S., mãe biológica do infante, que julgou improcedentes os pedidos formulados na inicial e revogou a guarda definitiva anteriormente concedida à autora, restabelecendo-a em favor da ré.

A autora apelou pelas razões de f. 186/196 alegando que o vínculo afetivo é fundamental para o estabelecimento do estado de filiação e que preenche os requisitos exigidos para a adoção, previstos no art. 197-A do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Informa que possui a guarda de fato do menor desde o seu nascimento, em 25.10.2009, tendo obtido a guarda definitiva em 25.11.2010.

Afirma que a apelada sempre teve um vida desregrada, envolvendo-se com drogas e prostituição, e que nunca teve qualquer tipo de contato com o adotando, sendo certo que este cresceu sem conhecer a mãe biológica.

Sustenta que, nos termos do art. 50, §13, inciso III, do ECA, a adoção poderá ser deferida sem a exigência de prévia inscrição no Cadastro Nacional de Adoção, nas hipóteses em que o adotante tiver a guarda legal de criança maior de 3 (três) anos de idade, e desde que comprovado o estabelecimento de laços de afinidade e afetividade.

Assevera que, nos casos que envolvem adoção, deve-se ter em vista, sempre e primordialmente, o real interesse do menor.

Salienta que se encontram presentes alguns dos requisitos autorizadores da perda do poder familiar, notadamente aqueles previstos no art. 1.638, incisos II e III, do Código Civil.

Aduz que restou comprovada a impossibilidade de reintegrar o menor à família biológica, devendo ser observado o disposto no art. 100, inciso X, parágrafo único, do ECA.

Enfatiza que o menor foi retirado de maneira abrupta do único lar que teve na vida, e no qual vivia na companhia de 2 (dois) irmãos biológicos, sem a observância de um período de transição ou qualquer tipo de preparação psicológica.

Por fim, pugna pelo provimento do recurso e pela reforma da sentença, a fim de que seja julgado procedente o pedido de adoção do menor, e revogada a guarda concedida à apelada, restabelecendo-a em seu favor.

Contrarrazões às f. 206/210.

A d. Procuradoria-Geral de Justiça, através do parecer de f. 251/254, manifestou-se pelo provimento do recurso.

É o relatório.

Conheço do recurso, porquanto presentes os pressupostos de sua admissibilidade.

Inicialmente, importante destacar o que dispõe o art. 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente:

"Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade."

Nos arts. 4° e 5°, o ECA estabelece:

"Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:

a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;

b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;

c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;

d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

Art. 5º. Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais."

No mesmo sentido, a Constituição Federal, no seu art. 227, prevê:

"Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão."

Entretanto, o poder familiar somente pode ser extinto nos termos do art. 1.635 do Código Civil:

"Art. 1.635. Extingue-se o poder familiar:

I - pela morte dos pais ou do filho;

II - pela emancipação, nos termos do art. 5º, parágrafo único;

III - pela maioridade;

IV - pela adoção;

V - por decisão judicial, na forma do artigo 1.638."

Por sua vez, o art. 1.638 do Código Civil elenca as possibilidades que podem ensejar a destituição do poder familiar:

"Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:

I - castigar imoderadamente o filho;

II - deixar o filho em abandono;

III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;

IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente."

Ressalta-se, ainda, o expresso no art. 24 do Estatuto da Criança e do Adolescente:

"Art. 24. A perda e a suspensão do poder familiar serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o art. 22."

Sobre o assunto, Patrícia Pimentel de Oliveira Chambers Ramos leciona:

"O poder familiar consiste em um múnus, um poder-dever exercido em favor e no interesse do filho, que impõe aos genitores o dever de prestar-lhes assistência, respeitá-los, zelar por sua educação e integridade física e psíquica, além de proporcionar-lhes toda a proteção possível para o mais completo desenvolvimento do infante (in O poder familiar e a guarda compartilhada sob o enfoque dos novos paradigmas do direito de família, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 39-40)."

Caso venham a ser desatendidas tais obrigações, os genitores poderão ser destituídos do poder familiar, conforme se infere dos arts. 1.638 do Código Civil e 24 da Lei nº 8.069/90.

Feitas essas considerações, passo à análise do caso concreto.

Da leitura dos autos, extrai-se que N.O.S. foi entregue por sua mãe biológica à adotante logo após o nascimento, ainda na maternidade, sendo que, desde então, com esta permaneceu, estando hoje com 5 (cinco) anos de idade, como atesta a certidão de nascimento de f. 19.

Frise-se que, na certidão de nascimento do menor, não consta o nome do seu pai biológico e que a autora, ora apelante, obteve a guarda definitiva do mesmo em 25.11.2010, conforme atesta a certidão de f. 16.

O relatório psicológico realizado em 28.01.2013 (f. 87/91) não deixa dúvidas de que a criança "mostra-se bem adaptada sob os cuidados da atual guardiã, com quem vive desde seu nascimento, na companhia de dois irmãos. Demonstra ter vinculação afetiva em seu atual núcleo familiar, onde é bem cuidado". E conclui: "[...] do ponto de vista afetivo, nota-se que N. não possui vínculo com a mãe biológica, até o momento. Os vínculos já estabelecidos pela criança com a atual guardiã e seu núcleo familiar merecem ser considerados".

Portanto, é evidente que a formação de laços de afetividade se deu com a família substituta, não reconhecendo, o menor, a figura de sua mãe biológica, com a qual nunca manteve contato.

Registra-se, ainda, que a apelada, aos 16 (dezesseis) anos de idade, teve seu primeiro filho, M.H.S., nascido em 27.11.2003, que desde o nascimento foi criado pela avó paterna. Em 09.03.2006, teve o segundo filho, D.H.S., conforme comprova a certidão de nascimento de f. 64. Logo em seguida, a saber, em 27.05.2007, nasceu o terceiro filho da apelada, M.S.S., conforme atesta a certidão de nascimento de f. 65; sendo certo que estes dois últimos também foram acolhidos pela apelante e estão sob a sua guarda definitiva desde 28.01.2010 (f. 70/71).

Depois do nascimento do menor N.O.S, a apelada ainda teve mais 2 (filhos), a saber, N.V.S., nascida em 20.12.2011 (f. 52), e o último, de seu relacionamento com o atual companheiro. Note-se que a autora, no período de 8 (oito) anos, teve 5 (cinco) filhos, sendo todos de pais distintos, e apenas dois deles registrados pelos pais biológicos.

Além disso, a mãe biológica do menor N.O.S. relatou à psicóloga judicial que, no passado, envolveu-se com o uso de drogas e prostituição, levando uma vida instável, pelas ruas. Confessou que deixou os filhos sob os cuidados da adotante por reconhecer que a dependência química a impedia de exercer adequadamente a maternidade (f. 89).

Afirmou que, depois de conhecer o atual companheiro, em meados de 2010, abandonou o uso de drogas e o estilo de vida anterior. Entretanto, não há nos autos prova de que se submeteu a tratamento psiquiátrico e psicológico para livrar-se da dependência química, e tampouco de alta médica e terapêutica. Na verdade, não existe qualquer verificação médica da dependência química.

Importante salientar que o prognóstico do usuário de substância psicoativa é de difícil e penoso tratamento, exigindo esforço, resistência e empenho dos dependentes, como também de toda a família. A reabilitação comumente é um processo longo, sendo certo que a apelada adotou um novo estilo de vida há pouco tempo, fato que denota que ainda pode estar vulnerável.

Outro fato que chama a atenção é que a apelada, muito embora tenha afirmado que, a partir de meados de 2010, passou a ter uma vida estável, somente ajuizou a ação de regulamentação do direito de visitas aos filhos em 21.08.2012 (f. 98), ou seja, em data imediatamente posterior ao ajuizamento da presente ação, a saber, em 31.07.2012.

Ora, se em 2010 já se encontrava livre do vício e levando uma vida normal, por que não requereu a regulamentação do direito de visitas, ou até mesmo a revogação da guarda definitiva dos menores, àquela época? Por que deixou para fazê-lo somente depois do ajuizamento da presente ação?

Diante desse cenário, entendo comprovado o abandono material, moral e afetivo de N.O.S. por sua genitora, sendo certo, por outro lado, que sobressai dos autos a existência de forte vínculo afetivo entre a adotante e o menor, emanando da prova testemunhal que:

"[...] que conhece N. e que ele foi entregue pela requerida à requerente assim que nasceu; que não sabe se a requerida foi alguma vez visitar a criança ou pedi-la de volta; [...] que N. está com a requerente há uns três a quatro anos; que o menor tem boa relação com a requerente, que ele é bem cuidado e bem alimentado; que o menor trata a requerente por mãe; que a avó da requerida é sua vizinha de fundo; que há um bom tempo não vê N., mas, até onde sabe, ela não teria condições de cuidar do menor; [...]" (f. 132).

"[...] que conhece N. desde quando ele foi morar com a requerente; que N. a trata como mãe; que a requerente mora com N. e seus outros dois irmãos; que N. não tem contato com a requerida; que o menor é bem cuidado; que pelo que sabe a requerida possui um temperamento forte; que nem a requerida e seus familiares foram a casa da requerente oferecer qualquer tipo de assistência ao menor; [...] que o menor e os demais filhos da requerida foram recebidos pela requerente a pedido do conselho tutelar; [...]" (f. 133).

"[...] que a requerente cuida bem do menor; que o menor a trata por `mamãe; que a requerente passou a cuidar do menor em virtude de a requerida estar envolvida com drogas e não ter condições de cuidar do menor; que, quando a requerente pegou o menor no hospital por ocasião de seu nascimento já haviam combinado antes que ela cuidaria dele; que nenhum familiar e nem mesmo a requerida ofereciam qualquer ajuda para o menor; [...]" (f. 134).

"[...] que não sabe se N. teria condição de cuidar de outras crianças, pois não sabe se daria certo; [...] que N. falou para a depoente que deu os filhos para a requerente cuidar devido ao uso de drogas; que a requerida falou a ela que a requerente cuida muito bem dos seus filhos; [...]" (f. 136).

A própria genitora do menor, ouvida à f. 130, informou "que entregou N. para a requerente, pois estava atravessando problemas com drogas; que os outros dois filhos já estavam com a requerente pelo mesmo motivo; [...] que N. já está com a requerente há uns quatro anos; que nunca visitou o filho, pois a requerente não permitia; [...] que a requerente cuida bem de N.; [...] que N. não a reconhece como mãe, pois a requerente nunca a deixou ter contato com ele" (f. 130).

A testemunha E.A.A., não compromissada por ser mãe da requerida, afirmou "que a requerente pegou o menor no hospital, mas a declarante na ocasião não teve conhecimento de que isso iria ocorrer; que ficou sabendo disso quando a requerente pegou a criança no hospital; que N. entregou a criança para a requerente, pois não tinha condições financeiras e por estar envolvida com drogas; [...] que, apesar de não manter contato com a N. há um bom tempo, acredita que ela não possui condições financeiras nem psicológicas de cuidar da criança; que nenhum familiar de N. ajudou ou ajuda, assistindo N.; que já presenciou a requerida por diversas vezes agredir um dos filhos de nome M., que na visão da declarante as agressões foram violentas; que a requerente cuida bem de seus netos e que sabe disso, pois sempre que pode os visita; que o menor trata a requerente como mãe; [...]" (f. 135).

O conjunto probatório é, pois, esclarecedor e possibilita concluir que, diante da realidade apresentada - embora drástica e excepcional a medida -, a fim de evitar mais danos para o infante, melhor solução não há que atenda aos seus interesses, do que a completa cessação do vínculo com a família de origem, flagrantemente desestruturada.

Com isso, o menor terá a chance de ver regularizada a sua adoção por quem o acolheu desde a mais tenra idade, e vem manifestando, por suas ações, verdadeiro interesse em assumi-lo, protegendo-o e trabalhando para o seu ideal desenvolvimento, em todos os aspectos.

Desse modo, apesar de não ter sido ajuizada ação própria visando à decretação da perda do poder familiar da requerida N.E.A.S., entendo que essa circunstância não é capaz de impedir a adoção pretendida, por suposta inobservância do art. 45 do Estatuto da Criança e do Adolescente, in verbis:

"Art. 45. A adoção depende do consentimento dos pais ou do representante legal do adotando.

§ 1º O consentimento será dispensado em relação à criança ou adolescente cujos pais sejam desconhecidos ou tenham sido destituídos do poder familiar.

§ 2º Em se tratando de adotando maior de doze anos de idade, será também necessário o seu consentimento".

Aliás, o referido diploma legal em seu art. 43 estabelece que "a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos", o que, realmente, afigura-se na espécie.

Ademais, considerando a excepcionalidade do caso e tendo em vista que foi oportunizada à genitora a ampla defesa e o contraditório, restando, ao final da instrução probatória, bem evidenciado o sólido vínculo socioafetivo entre a requerente e N.O.S, não tendo sido apresentados, pela requerida, argumentos capazes de afastar a conclusão no sentido da efetivação da adoção, concluo que a perda do poder familiar poderá ser com ela conjuntamente decretada.

Isso porque constitui decorrência lógica da aplicação dos princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança e do adolescente.

As circunstâncias do caso autorizam, também, a flexibilização da obrigatoriedade de observância do cadastro de adoção a que alude o art. 50 do Estatuto da Criança e do Adolescente, visto que se trata de formalidade que se destina, precipuamente, a garantir a preservação do próprio interesse da criança envolvida, não consistindo em um fim em si mesmo.

Tal se diz, porque o Estatuto da Criança e do Adolescente é taxativo ao determinar que, em casos de adoção, é indispensável a estrita observância ao cadastro previsto no seu art. 50. A desconsideração da referida lista é medida excepcional e somente pode ser aceita quando presente algum dos casos dispostos no §13 de tal dispositivo, que assim dispõe:

"§13. Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei quando:

I - se tratar de pedido de adoção unilateral;

II - for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade;

III - oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 ou 238 desta Lei".

Com efeito, sabe-se que o cadastro de adoção se destina a dar maior agilidade e segurança ao processo de adoção, uma vez que permite averiguar previamente o cumprimento dos requisitos legais pelo adotante, bem como traçar um perfil em torno de suas expectativas. Evita influências outras, negativas ou não, que, por vezes, levam à sempre indesejada "adoção à brasileira".

Todavia, deve-se ter em mente sempre o melhor interesse da criança. É certo que existem casos, excepcionais, em que se mitiga a habilitação dos adotantes no competente cadastro para o deferimento do pedido de adoção, possibilitando a chamada adoção direta ou intuitu personae, como inclusive já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça:

"Civil. Família. Guarda provisória. Comércio de menor. Inexistente. Família afetiva. Interesse superior do menor. Observância da lista de adoção. - Mesmo em havendo aparente quebra na lista de adoção, é desaconselhável remover criança que se encontra, desde os primeiros dias de vida e por mais de dois anos, sob a guarda de pais afetivos. A autoridade da lista cede, em tal circunstância, ao superior interesse da criança (ECA, art. 6º) (REsp 837324/RS, Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, j. em 18.10.2007).

"Agravo regimental. Medida cautelar. Aferição da prevalência entre o cadastro de adotantes e a adoção intuitu personae. Aplicação do princípio do melhor interesse do menor. Estabelecimento de vínculo afetivo da menor com o casal de adotantes não cadastrados, com o qual ficou durante os primeiros oito meses de vida. Aparência de bom direito. Ocorrência. Entrega da menor para outro casal cadastrado. Periculum in mora. Verificação. Recurso improvido (AgRg na MC 15097/MG, Relator Ministro Massami Uyeda, j. em 05.03.2009, DJe de 06.05.2009)."

Na hipótese dos autos, retirar uma criança com 5 (cinco) anos de idade do seio da família da apelante, que hoje também é a sua, e privá-la, inclusive, da convivência com seus 2 (dois) irmãos biológicos, sob o pretexto de coibir a adoção direta, a meu ver, é extremamente prejudicial. O menor poderá ser exposto a grande instabilidade emocional, em face de uma brusca mudança.

Isso porque uma criança de 5 (cinco) anos de idade fala, caminha e reconhece, com clareza, as pessoas que fazem parte do seu seio familiar e é capaz de defini-las, com demonstrações objetivas. Ora, determinar agora, quando já transcorridos mais de 5 (cinco) anos da sua colocação em família substituta, que o menor não conviva mais com aqueles que ele entende como família, é medida muito drástica.

Não significa dizer, com essas ponderações, que penso ser adequada a burla ao cadastro de pretendentes à adoção, muito antes pelo contrário. Entretanto, compreendo que, no caso específico, não há justificativa para a aplicabilidade da legalidade estrita se sobrepor ao melhor interesse da criança.

Na adoção intuitu personae, como a que se discute nestes autos, cabe ao Poder Judiciário, diante da idade atual do infante, verificar como está ocorrendo o crescimento da criança, no seu amplo aspecto e, se for o caso, não retirar o menor da família em que se encontra.

Assim sendo, a retirada do infante da casa de sua guardiã após o transcurso de longo período de convivência e constatada a formação de fortes laços de afetividade, não se mostra recomendável, pois certamente resultará em traumas e frustrações para o menor, com prejuízo ao seu ideal desenvolvimento, inserido que está como verdadeiro membro daquele núcleo familiar.

Sobre o tema, colhem-se os seguintes julgados do Superior Tribunal de Justiça:

"Apelação cível. Ação de adoção cumulada com pedido de destituição de poder familiar. Sentença de procedência. Insurgência recursal pelo Ministério Público. Casal que acolheu criança com quarenta dias de vida a pedido da mãe biológica. Ausência de indícios de tráfico ou outro ilícito. Adotantes cadastrados, mas fora da ordem cronológica. Confronto da prevalência entre o cadastro de adotantes e a adoção intuitu personae. Criança com mais de um ano e dez meses. Formação de liame afetivo amplamente comprovado. Mitigação da observância rígida ao cadastro de habilitados à adoção. Preponderância dos princípios da prioridade absoluta e do melhor interesse da criança. Decisão de primeira instância acertada. Recurso conhecido e desprovido.

1. O ato de trazer para entidade familiar criança de origem biológica diversa, ou seja, adotar, simboliza a possibilidade da construção de vínculo de afetividade mútuo, independentemente da gênese sanguínea, que visa, primordialmente, o bem-estar da criança adotada e sua formação digna e plena como ser humano, em respeito aos preceitos e garantias fundamentais.

2. Não se pode perder de vista que o sistema do cadastro único de pretendentes à adoção, cuja importância é indiscutível, constitui meio para alcançar a efetivação do direito material representado pela adoção. Não representa fim em si mesmo. E, por causa disso, sua observância não prescinde de ser flexibilizada a fim de atender com razoabilidade e prudência hipóteses excepcionais fundadas na proteção integral e no melhor interesse da criança.

`A observância do cadastro de adotantes, vale dizer, a preferência das pessoas cronologicamente cadastradas para adotar determinada criança não é absoluta. Excepciona-se tal regramento, em observância ao princípio do melhor interesse do menor, basilar e norteador de todo o sistema protecionista do menor, na hipótese de existir vínculo afetivo entre a criança e o pretendente à adoção, ainda que este não se encontre sequer cadastrado no referido registro (REsp 1172067/MG, Relator Ministro Massami Uyeda, j. em 18.03.2010)"

"Civil. Adoção. Vício no consentimento da genitora. Boa-fé dos adotantes. Longo convívio da adotanda com os adotantes. Preponderância do melhor interesse da criança.

1. A criança adotanda é o objeto de proteção legal primário em um processo de adoção, devendo a ela ser asseguradas condições básicas para o seu bem-estar e desenvolvimento sociopsicológico.

2. A constatação de vício no consentimento da genitora, com relação à entrega de sua filha para a adoção, não nulifica, por si só, a adoção já realizada, na qual é possível se constatar a boa-fé dos adotantes.

3. O alçar do direito materno, em relação à sua prole, à condição de prevalência sobre tudo e todos, dando-se a coacta manifestação da mãe-adolescente a capacidade de apagar anos de convivência familiar, estabelecida sob os auspícios do Estado, entre o casal adotante, seus filhos naturais e a adotanda, no único lar que essa sempre teve, importa em ignorar o direito primário da infante, vista mais como objeto litigioso e menos, ou quase nada, como indivíduo, detentora, ela própria, de direitos, que, no particular, se sobrepõem aos brandidos pelas partes.

4. Apontando as circunstâncias fáticas para uma melhor qualidade de vida no lar adotivo e associando-se essas circunstâncias à convivência da adotanda, por lapso temporal significativo - 09 anos -, junto à família adotante, deve-se manter íntegro esse núcleo familiar.

5. Recurso especial provido (REsp nº 1199465/DF, Relatora Ministra Nancy Andrighi, j. em 14.06.2011, DJe de 21.06.2011).

Assim, em atenção às circunstâncias do caso, e considerando o direito aplicável à espécie, especialmente o que estabelecem os arts. 227, caput, e 229 da Constituição Federal; arts. 3º, 4º, 5º, 22, 24 e 43 da Lei nº 8.069/90; e arts. 1.634, 1.635, incisos IV e V, 1.637 e 1.638, estes últimos do Código Civil, dou provimento ao recurso, decretando a perda do poder familiar da ré, ora apelada, N.E.A.S. em relação ao filho, N.O.S, concedendo, por outro lado, a adoção do referido infante em favor da autora, ora apelante, E.A.P.O, ficando revogada a guarda concedida à requerida, N.E.A.S., restabelecendo-a em favor da requerente, E.A.P.O.

Recomendo ainda que, após seu retorno ao lar da apelante, o menor N.O.S seja acompanhado por uma assistente social pelo prazo necessário.

Sem custas.

Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Afrânio Vilela e Marcelo Rodrigues.

Súmula - DERAM PROVIMENTO AO RECURSO, COM RECOMENDAÇÃO.

Data: 04/03/2015 - 11:02:15   Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico - 03/02/2015
Extraído de Sinoreg/MG

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