Artigo – O regime da “Separação Obrigatória” para o maior de 70 anos não é mais “obrigatória”

Artigo – O regime da “Separação Obrigatória” para o maior de 70 anos não é mais “obrigatória”

Publicado em 2 de fevereiro de 2024
* Letícia Franco Maculan Assumpção
* Paulo Hermano Soares Ribeiro

         O regime da separação de bens, em sua face obrigatória por razões etárias, não é novidade no sistema brasileiro. Esteve presente no Código Civil de 1916, a princípio tornando compulsório o regime de separação para o homem maior de sessenta e a mulher maior de cinquenta anos (CC/2016, art. 258). O legislador de 2002 manteve o critério, apenas igualando a idade de ambos para sessenta anos, até que a Lei nº 12.344 de 09/12/2010, elevou a idade base para setenta anos, alterando o inciso II do art. 1.641.

2          A separação obrigatória de bens já suscitava desconforto no Supremo Tribunal Federal (STF), razão pela qual o Pretório Excelso, ainda quando cumulava as funções de instância recursal, guardião da legislação federal e da Constituição, sintetizou sua jurisprudência sobre o tema na súmula 377, aprovada na sessão plenária de 03 de abril de 1964, oriunda de decisões que tiveram como referências legislativas os artigos 258 e 259 da Lei 3.071/1916 (código civil revogado), o art. 7º, § 5º do Decreto Lei 4.657/1942, art. 3º da lei nº 883/1949, e, art. 18, do Decreto Lei 3.200/1941, que sustentaram os precedentes RE 10951 (DJ de 26/09/1963), RE 7243 EI (DJ de 16/08/1957), RE 8984 EI ( DJ de 11/01/1951) e  RE 9128 (DJ de 17/12/1948). O texto da súmula – “no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento” – mitigava, por força pretoriana, o principal efeito do regime se separação – o de estabelecer incomunicabilidades – ao permitir a comunhão de aquestos.

            A súmula 377 do STF ganhou recentemente uma versão dada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), aplicável à união estável de pessoas com idade igual ou maior de setenta anos. Trata-se da súmula 655 do STJ, cujo conteúdo, além de revigorar a súmula do STF, assegura seus efeitos também na união estável e consolida a exigência de prova do esforço comum para a comunhão de aquestos: “Aplica-se à união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum”. (SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 09/11/2022, DJe 16/11/2022)

3          O STF, que desde a década de 1960 não tinha mais voltado ao tema, no dia 1º de fevereiro de 2024, no julgamento da matéria objeto do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1309642, que teve a repercussão geral reconhecida pelo Plenário (Tema 1.236), faz inserir no sistema uma novidade de grande impacto social e jurídico, principalmente no Direito de Família e no Direito das Sucessões.

Segundo o guardião da constituição, o regime estabelecido em razão do art. 1.641, II, do Código Civil é constitucional, mas pode ser afastado por convenção entre as partes, mediante a lavratura de pacto antenupcial.

A tese de repercussão geral fixada pelo STF é a seguinte: “Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no artigo 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes mediante escritura pública”.

Assim, o regime de bens conhecido por “separação obrigatória de bens” nega seu próprio nome e não será mais tão obrigatório, pelo menos para os maiores de 70 anos de idade. Com essa interpretação o STF reconhece que a questão do art. 1.641 não é de ordem pública, porque passível de modificação pela vontade das partes, característica das normas dispositivas, seja para quem protagoniza casamento ou união estável.

O Plenário do STF entendeu que manter a obrigatoriedade da separação de bens, prevista no Código Civil, desrespeita o direito de autodeterminação das pessoas idosas. A interpretação é saudável porque se ergue contra a discriminação em função da idade das pessoas, cuja vedação tem sede constitucional. Aliás, não há no sistema jurídico relativização da capacidade jurídica de fato, como um deletério efeito colateral da graça de se alcançar uma idade provecta.

4          A interpretação conforme à Constituição Federal dada pelo STF ao art. 1.641, II, do Código Civil não inibe a existência ou os efeitos do regime da separação obrigatória, nem nega a súmula 377, posto que, no silêncio das partes, o regime continuará a ser aplicado para todas as hipóteses em que tem previsão expressa na legislação infraconstitucional, inclusive para o casamento ou união estável de pessoas com idade igual ou maior que setenta anos. O estado de coisas somente muda se houver manifestação expressa das partes.

Com a decisão, a pessoa com idade igual ou maior que setenta anos de idade, pode afastar o regime da separação legal por pacto antenupcial, no casamento, e por escritura ou termo de união estável, com a escolha, de qualquer outro regime de bens pelo maior de 70 anos de idade, inclusive o “trágico” regime da comunhão universal de bens. Se o casal não optar por lavrar pacto antenupcial, escritura ou termo de união estável, vale o regime da “separação legal”.

A decisão traz uma ampliação das possibilidades no exercício da autonomia privada no que se refere ao regime da separação obrigatória de bens, que podem ser assim sintetizas, considerando o julgado do STF e o estado da arte sobre o assunto:

Se as partes desejam o regime da separação e que seus efeitos sejam aqueles definidos na súmula 377 do STF (ou na súmula 655 do STJ), o casamento ou união estável será assim será realizado, bastando o silêncio dos interessados para assegurar as consequências esperadas, sendo que eventual esforço comum deverá ser demonstrado no futuro, para garantir a aplicação da súmula.

Se as partes, admitem o regime de separação de bens, mas não desejam os efeitos das súmulas, também podem realizar o casamento ou união estável, manifestando sua vontade em pacto antenupcial no sentido de afastar aqueles efeitos (REsp n. 1.922.347/PR, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 7/12/2021, DJe de 1/2/2022.)

Se as partes não desejam o regime da separação de bens, nem os efeitos das súmulas, então podem pactuar o regime de sua preferência, sem as amarras da restrição imposta pelo art. 1.641, II, do Código Civil.

A opção volitiva de alteração do regime de bens, oportuno lembrar, implica em efeitos que se espraiam durante o casamento ou união estável, mas também, e principalmente, nos efeitos sucessórios. Embora não haja ainda acesso aos votos escritos, pensamos que a eventual adoção de regime típico ou customizado pelas partes leva consigo os efeitos sucessórios inerentes ao novo regime, ficando completamente descartado qualquer efeito residual do regime da separação obrigatória.

         Uma interessante questão está relacionada com a terminologia adequada à nova perspectiva do regime, que perde sua virtude (ou vício) de obrigatório. Nesse primeiro momento, entendemos que o mais adequado é denominá-lo “regime da separação legal de bens”, para diferenciá-lo do regime da separação convencional de bens, que é aquele decorrente de pacto antenupcial ou de escritura pública ou termo declaratório de união estável.

Reiteramos que continua existindo o regime da separação de bens que decorre da lei – regime que até dia 1º de fevereiro de 2024 denominávamos “separação obrigatória”, permanecendo íntegras as hipóteses descritas no art. 1.641 (É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial).

Esse regime é diferente do regime da separação convencional, pois, pelo art. 1.829, I, do Código Civil, em concorrência com descendentes, na “separação legal” o cônjuge não é herdeiro nem meeiro. Como já dito, cabe ressaltar, também, que a Súmula 377/STF ainda é aplicável e pode ser reconhecido judicialmente o direito à meação dos bens adquiridos onerosamente na constância do casamento ou da união estável no regime da “separação legal” se provado esforço comum pelo interessado.

6          Outro tópico que merece atenção é que esse direito de escolha, pelo menos por enquanto, vale apenas para o maior de setenta anos de idade. Para os outros casos do art. 1.641 do Código Civil o regime da separação legal de bens continua sendo obrigatório. Exceto para o maior de 70 anos de idade, nos casos previstos no art. 1.641 do Código Civil, cabe a lavratura de pacto antenupcial, escritura ou termo de união estável apenas com o objetivo de afastar a Súmula 377/STF, mas não pode ser escolhido outro regime de bens.

            Seja como for, é sempre oportuno celebrar as normas e decisões que fortalecem a autonomia existencial e negocial das pessoas, o que equivale a respeitar suas opções de vida e o caminho que escolheram trilhar.

Fonte: recivil

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Regime da separação legal de bens e o STF (ARE 1.309.642)

Carlos Eduardo Elias de Oliveira
sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024
Atualizado às 07:42

Na sessão de 1º de fevereiro de 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu: nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no art. 1.641, II, do Código Civil pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes, mediante escritura pública.

A propósito, veja o art. 1.641 do CC:

Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;

II - da pessoa maior de 70 (setenta) anos; 

III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.

Apesar de o inteiro dos votos ainda estar pendente de publicação, foi possível acompanhar os debates dos Ministros na sessão por meio da TV Justiça1.

Diante disso, passamos a expor nossas considerações sobre o tema.

No caso de septuagenário, o STF deu ao inciso II do art. 1.641 do CC interpretação conforme à Constituição Federal (STF, ARE 1.309.642/SP, Pleno, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 1º/02/2024). Estabeleceu que o regime da separação legal pode ser afastado por escritura pública: o art. 1.641, II, do CC não é norma cogente, e sim norma dispositiva (ou supletiva). Decidiu ser inconstitucional privar a pessoa idosa da liberdade de gestão patrimonial, inclusive na escolha de regime de bens do casamento ou da união estável.

O afastamento do regime da separação legal pode ocorrer destas formas:

a) por escritura pública de pacto antenupcial ou - no curso do casamento - por meio do procedimento legal de alteração de regime de bens (art. 1.639, § 2º, CC; art. 734 do CPC); ou

b) mediante escritura pública lavrada antes ou no curso da união estável.

Sobre esse último ponto (o da união estável), não se aplica a regra geral do art. 1.725 do CC, que admite instrumento particular para a escolha de regime de bens no caso de união estável. O STF exige escritura pública, que é lavrada por um tabelião de notas. Isso, porque o tabelião tem o dever de apurar a capacidade dos declarantes (art. 215, § 1º, II, CC), fato que reduzirá os riscos de golpes contra a pessoa idosa. Trata-se de cautela importante diante da maior vulnerabilidade a que podem estar expostas as pessoas idosas.

No caso de casamentos ou união estável anterior ao supracitado julgado do STF sob o regime da separação legal, é direito dos consortes mudar o regime de bens na forma acima.

Há alguns pontos sensíveis a serem enfrentados à vista do supracitado julgamento do STF. Passamos a expor nossa posição.

Em primeiro lugar, o STF não extinguiu o regime da separação legal. Este segue em vigor, com todas as suas particularidades. Não se confunde, portanto, com o regime da separação convencional. Citamos três exemplos de diferenças práticas:

a) o viúvo não concorre com descendentes no regime da separação legal de bens, ao contrário do caso do regime da separação convencional (art. 1.829, CC);

b) a outorga conjugal do art. 1.647 do CC é devida no regime da separação legal, e não no do regime da separação convencional;

c) os aquestos se comunicam no regime da separação legal se houver prova do esforço comum e não existir pacto antenupcial em sentido contrário, conforme Súmula nº 655/STJ ("Aplica-se a união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum").

Em segundo lugar, o afastamento do regime da separação legal pelo septuagenário ocorre mediante a escolha de qualquer outro regime de bens, típico ou atípico. Até mesmo o regime da separação convencional pode ser pactuado, por ele ser diferente do regime da separação legal. É livre a estipulação do regime de bens (art. 1.639, CC). A única diferença entre o septuagenário e os demais é que o regime legal de bens é o da separação legal (art. 1.641, II, CC). Para as demais pessoas, o regime legal é o da comunhão parcial de bens (art. 1.640, CC).

Em terceiro lugar, caso o septuagenário escolha outro regime de bens (inclusive o da separação convencional), essa escolha tem de ser respeitada para todos os fins, inclusive para a interpretação do art. 1.829, I, CC. Esse dispositivo não permite o viúvo concorrer com os descendentes na herança se era casado no regime da separação legal ou em alguns outros regimes de bens.

Assim, se o septuagenário adotou outro regime de bens - diverso do da separação legal -, a interpretação do art. 1.829, I, do CC tem de levar em conta esse regime escolhido pelas partes. Interpretação diversa seria restringir a liberdade de escolha de regime de bens da pessoa idosa, em afronta ao supracitado julgado do STF.

Em quarto lugar, o afastamento do regime da separação legal por ato de vontade é apenas para o caso de pessoa maior de 70 anos (art. 1.641, II, CC). O STF não estendeu essa liberdade de escolha para as demais hipóteses de regime da separação legal: violação a causa suspensiva ou exigência de suprimento judicial (art. 1.641, I e III, CC).

Em quinto lugar, indaga-se: seria ainda tecnicamente valer-se da expressão regime da separação obrigatória como sinônima de regime da separação legal? Entendemos que sim, por dois motivos.

De um lado, o adjetivo "obrigatória" qualifica o substantivo "separação", e não o verbete "regime". Isso significa que a obrigatoriedade está na incomunicabilidade dos bens (separação dos bens), e não propriamente na imposição do regime.

De outro lado, nomenclatura tem de manter aderência à escolha legislativa: os arts. 496, parágrafo único, e 1.829, I, do CC valem-se da expressão regime da separação obrigatória. Seja como for, apesar da sinonímia, reputamos ser preferível valer-se da expressão regime da separação legal, para evitar incompreensões acerca do direito do septuagenário em afastá-lo por ato de vontade.

Enfim, podemos resumir o ambiente patrimonial do regime de bens da seguinte maneira.

Há dois regimes legais supletivos, assim batizados porque vigoram se não tiver havido escolha de outro regime pelos consortes pela forma legalmente cabível. São eles:

a) o regime da separação legal de bens envolvendo septuagenário (art. 1.641, II, CC);

b) o regime da comunhão parcial de bens, que se aplica aos demais casos em que se admite a liberdade de escolha do regime de bens.

Além disso, há um regime legal cogente: o regime da separação legal envolvendo suprimento judicial ou violação de causa suspensiva (art. 1.641, I e III, CC). Nesses casos, os consortes não podem afastar esse regime por ato de vontade.

Como se vê, o regime da separação legal pode ser cogente ou supletivo, a depender da sua origem.

Fonte: Migalhas

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