Jurisprudência mineira – Apelações cíveis – Ação anulatória – Alienação de bem imóvel – Incapacidade do alienante à época da venda do bem – Transferência do bem à genitora do falecido

Jurisprudência mineira – Apelações cíveis – Ação anulatória – Alienação de bem imóvel – Incapacidade do alienante à época da venda do bem – Transferência do bem à genitora do falecido

Publicado em 26 de outubro de 2020

APELAÇÕES CÍVEIS – AÇÃO ANULATÓRIA – NEGÓCIO JURÍDICO – ALIENAÇÃO DE BEM IMÓVEL – INCAPACIDADE DO ALIENANTE À ÉPOCA DA VENDA DO BEM – COMPROVAÇÃO – SIMULAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO – TRANSFERÊNCIA DE BEM À GENITORA DO FALECIDO – DIREITO DO FILHO NASCITURO, RECONHECIDO À ÉPOCA – ATUAIS RESIDENTES NO IMÓVEL – DIREITO ÀS BENFEITORIAS – SENTENÇA CONFIRMADA

– Havendo provas de que o negócio jurídico foi entabulado, quando uma das partes encontrava-se incapaz de expressar vontades em decorrência de doença terminal, resta evidente a sua nulidade.

– Ocorre a simulação quando as partes celebram negócio jurídico de aparência normal, mas com manifestação enganosa de vontade, visando a enganar terceiros ou infringir a lei.

– Constatados vícios no negócio jurídico firmado, é devida a restituição do imóvel ao patrimônio do falecido, devendo o bem ser inventariado e partilhado, nos termos da sentença.

Apelação Cível nº 1.0433.00.012180-9/002 – Comarca de Montes Claros – Apelantes: 1os) Alberto Luiz Damasceno e outra, Nair Rodrigues Gomes Damasceno – 2os) Maria dos Anjos Cardoso, Santo Cardoso e outro – Apelado: Carlos Matheus Veloso Damasceno – Litisconsorte: Terezinha de Jesus Martins Damasceno – Relator: Des. Carlos Roberto de Faria

ACÓRDÃO

Vistos etc., acorda, em Turma, a 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em negar provimento aos recursos.

Belo Horizonte, 23 de setembro de 2020. – Carlos Roberto de Faria – Relator.

NOTAS TAQUIGRÁFICAS

DES. CARLOS ROBERTO DE FARIA – Trata-se de recurso de apelação interposto por Alberto Luiz Damasceno e outra, e Santo Cardoso e outro, inconformados com a sentença de f. 345/348 que julgou parcialmente procedente o pedido, nos seguintes termos:

“Pelo exposto, julgo parcialmente procedente o pedido formulado por Carlos Matheus Veloso Damasceno na presente ação anulatória de atos jurídicos, ajuizada em face de Alberto Luiz Damasceno, Terezinha de Jesus Martins Damasceno e Nair Rodrigues Gomes Damasceno. Depois, em face de Santo Cardoso e Maria dos Anjos Cardoso, declarou nulos os negócios jurídicos representados pelas escrituras públicas constantes das f. 14/14-v, 17/17-v, 289/289-v, bem como a procuração das f. 290/290-v, e, consequentemente, declarou nulos todos os registros imobiliários efetuados junto à matrícula nº 20.335, f. 034, do Livro nº 2. 1-AH do Cartório do 1º Ofício do Registro de Imóveis desta cidade, desde o registro R-02, incluindo este, restituindo-se a propriedade do imóvel ao de cujus Valfredo Carlos Damasceno, o qual deverá ser regularmente inventariado e partilhado, devendo sua posse provisória ser entregue ao seu herdeiro, o requerente Carlos Matheus Veloso Damasceno, após o trânsito em julgado desta decisão. Condeno o requerente a restituir aos litisconsortes necessários, Santo Cardoso e Maria dos Anjos Cardoso, a quantia correspondente às despesas com as benfeitorias realizadas no imóvel, o que deverá ser apurado em liquidação de sentença.

Face à sucumbência mínima do requerente, condeno as partes requeridas e os litisconsortes passivos a arcarem com o pagamento das custas e despesas processuais nas seguintes proporções:

a) 75% pelos requeridos Alberto Luiz Damasceno, Terezinha de Jesus Martins Damasceno e Nair Rodrigues Gomes Damasceno, de forma solidária.

b) 25% pelos litisconsortes passivos solidariamente. A exigibilidade quanto aos litisconsortes necessários fica suspensa em razão da gratuidade de justiça deferida tacitamente aos mesmos e que ratifico à vista das declarações de f. 296 e 297.

Condeno os requeridos Alberto Luiz Damasceno, Terezinha de Jesus Martins Damasceno e Nair Rodrigues Gomes Damasceno a pagarem, solidariamente, honorários advocatícios ao patrono do requerente, que fixo em 20% (vinte por cento) sobre o valor atualizado da causa, conforme o § 2º do art. 85 do Código de Processo Civil.

Condeno os litisconsortes necessários Santo Cardoso e Maria dos Anjos Cardoso a pagarem, solidariamente, honorários advocatícios ao patrono do requerente, que fixo em 10% (dez por cento) sobre o valor atualizado da causa, conforme o § 2º do art. 85 do Código de Processo Civil. A exigibilidade quanto aos litisconsortes necessários fica suspensa em razão da gratuidade de justiça deferida tacitamente aos mesmos e que ratifico à vista das declarações de f. 296 e 297.”

Em suas razões recursais, alegam os primeiros apelantes que não há prova técnica capaz de comprovar que o falecido Valfredo não se encontrava em perfeito exercício de suas faculdades mentais em razão da doença que o levou a óbito.

Frisa que os depoimentos colhidos não atestam se a enfermidade que acometeu o falecido alterou sua capacidade mental.

Informa que o depoimento não traz segurança ao juízo. Assevera que a assinatura do falecido foi colhida em uma prancheta, não tendo como ser emitida nos mesmos moldes que o signatário o faria sobre uma mesa, sentado numa cadeira ou de pé sobre um balcão. Aduz que não houve qualquer perícia no sentido de se declarar a não autenticidade da assinatura. Frisa a impossibilidade de se anular um ato jurídico perfeito, realizado por instrumento público, sem prova cabal da ausência de vontade expressa do participante. Afirma que, ao se declarar a incapacidade do falecido para firmar o negócio entabulado, também seria devido o reconhecimento de sua incapacidade para reconhecer a paternidade do autor.

Reafirma a inexistência de provas de que a mãe do autor tenha participado economicamente da aquisição do terreno e construção da casa em que residiam o falecido e sua genitora, ou que pretendiam se casar e residir no local.

Os segundos apelantes, por sua vez, alegam que, em momento algum, durante a venda do imóvel, foram informados acerca de qualquer processo judicial envolvendo o imóvel. Colocam que, se não fossem as citações recebidas dezoito anos após o ajuizamento da ação, ficariam na mais absoluta ignorância do fato. Frisam que o Tabelião informa que o senhor Valfredo e Alberto compareceram perante a ele para entabular a transferência do bem, sendo certo que, ou a venda foi realizada dentro das formalidades da lei, ou o Tabelião mentiu. Asseveram que a testemunha que afirmou a incapacidade de Valfredo não era médica, sendo incapaz de fazer qualquer análise do seu verdadeiro estado clínico de saúde. Aduzem que, se o estado de saúde de Valfredo era tão grave, o Tabelião se recusaria a lavrar o ato. Ressaltam que a escritura pública de f. 289 transmitiu aos compradores todo direito, domínio, ação e posse que tem sobre o imóvel, já podendo os mesmos, desde aquele ato, empossarem-se da coisa vendida, de forma que, ainda que a sentença seja confirmada, dona Nair detém a posse do bem enquanto estiver viva. Assim, colocam que ainda que se reconheça a fraude na venda do bem a Alberto Damasceno, a escritura pública que institui o direito ao usufruto permanece válida, conferindo aos beneficiários os direitos nela consignados.

Pugna pelo reconhecimento do ato jurídico que concretizou a venda do imóvel aos apelantes, terceiros de boa-fé.

Contrarrazões às f. 370/374, pelo desprovimento dos recursos aviados.

A d. Procuradoria-Geral de Justiça entendeu pela desnecessidade de emitir parecer.

É o relatório.

Juízo de admissibilidade.

Considerando que a legislação processual que rege os recursos é aquela vigente na data da publicação da decisão judicial, registro que o feito deverá ser analisado segundo as disposições do Novo Código de Processo Civil de 2015.

Conheço dos recursos voluntários interpostos, uma vez que próprios e tempestivos, e recebo-os no duplo efeito, nos termos do art. 1.012, caput, do CPC.

Mérito.

Insurgem-se ambos os recorrentes acerca do reconhecimento da incapacidade do falecido Valfredo Carlos Damasceno para firmar negócio de compra e venda do imóvel objeto do presente feito.

Para melhor deslinde da demanda, cumpre apontar a ordem dos fatos.

Em 17/5/1999, foi firmada escritura pública de compra e venda entre os irmãos Alberto Luiz Damasceno e Valfredo Carlos Damasceno (f. 14/14 v.), à véspera do óbito do senhor Valfredo, que se encontrava doente, acometido de câncer em estado terminal.

Para que um negócio jurídico seja válido, determinava o Código Civil de 1916, vigente à época, que fosse praticado por pessoa plenamente capaz, sendo nulos os atos praticados por pessoas absolutamente incapazes, e anuláveis os atos praticados por relativamente incapazes.

No caso, cumpre averiguar se o senhor Valfredo se encontrava no exercício de suas faculdades mentais, apesar de se encontrar em mau estado de saúde.

A prova dos autos indica a incapacidade do vendedor do imóvel, genitor do requerente, à época dos fatos. A testemunha Sheila Cristina Ferreira afirma à f. 329 que:

“[…] que alguns dias do falecimento do Valfredo, a depoente o visitou no hospital onde o Valfredo já não conseguia sequer falar ou fazer algum outro movimento senão com os olhos”. (sic)

Ora, se o falecido estava acamado alguns dias antes do óbito, sem conseguir fazer qualquer movimento a não ser com os olhos, é de se estranhar que tenha supostamente manifestado vontade de entabular a venda do imóvel para seu irmão, ou mesmo conseguido até mesmo assinar o documento, havendo indícios de que não houve o cumprimento de todas as formalidades legais pelas partes e pelo Tabelião.

Sobre a assinatura, o parquet destacou à f. 245, em parecer emitido anteriormente, a grande diferença entre a assinatura constante na escritura de f. 14 e seu documento de identidade à f. 15, perceptível até mesmo para um leigo.

Também se vislumbra uma impressão digital de Valfredo, supostamente colhida pelo Tabelião, próxima à sua assinatura, apesar de ser alfabetizado, o que permite presumir que o mesmo não tinha condições sequer de assinar por si só.

A assinatura da escritura pública aconteceu em 17/5/1999, e o óbito de Valfredo no dia 18/5/1999.

Noutro giro, ainda que se considere a plena capacidade de Valfredo na ocasião, não restam dúvidas de que o negócio foi entabulado por meio de simulação, sendo anulável. Sobre tal vício, dispõe o Código Civil de 1916, vigente à época da alienação do bem de Valfredo a Alberto:

“Art. 102. Haverá simulação nos atos jurídicos em geral:

I. Quando aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas das a quem realmente se conferem, ou transmitem.

II. Quando contiverem declaração, confissão, condição, ou cláusula não verdadeira.

III. Quando os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.

[…]

Art. 104. Tendo havido intuito de prejudicar a terceiros, ou infringir preceito de lei, nada poderão alegar, ou requerer, os contraentes em juízo quanto à simulação do ato, em litígio de um contra o outro, ou contra terceiros.

Art. 105. Poderão demandar a nulidade dos atos simulados os terceiros lesados pela simulação, ou representantes do poder público, a bem da lei, ou da fazenda.”

No caso, entendo que as partes, sabendo do direito do filho nascituro de Valfredo de receber em herança ao menos a metade dos bens pertencentes a seu pai, incluindo-se aí o imóvel em questão, entabularam simulação de compra e venda do imóvel, como se a alienação do mesmo a seu irmão Alberto decorresse de pagamento pelos gastos médicos do tratamento de Valfredo.

Perceba-se que Valfredo aliena o bem a Alberto à f. 14 em maio de 1999, no valor de R$ 5.553,36, e em julho de 2000 o mesmo imóvel é alienado à genitora dos irmãos (f. 17), pelo mesmo valor. Contudo, em memorial à f. 173, os requeridos informam que o valor declarado na escritura pública não correspondia ao “real montante da transação”, bem como que transferiu o imóvel para a genitora a título gratuito. Confira-se:

“[…] De modo que, sem nenhuma preocupação quanto ao real montante da transação, e apenas para que o irmão se sentisse melhor sabendo que também bancava parte do seu tratamento, o réu Alberto Luís Damasceno dele adquiriu todo o imóvel, permanecendo com ele em seu nome e poder por algum tempo, até que em 24 de março de 2000, bem antes do ajuizamento da presente ação anulatória, e após o falecimento do irmão, num gesto dos mais nobres e generosos, transferiu a moradia para a mãe, d. Nair Rodrigues Gomes Damasceno”. (sic)

Cumpre observar que antes do nascimento do requerente Carlos, a genitora de Valfredo, Sra. Nair, seria a herdeira necessária de ao menos metade de seus bens.

Por fim, entende-se nula, também, a escritura de compra e venda do imóvel em negócio jurídico firmado entre a Sra. Nair e Santo e Maria dos Anjos à f. 289/289 v.

A presente ação foi proposta em outubro de 2000 (f. 26), com citação e apresentação de contestação de Alberto e Nair em 2002 (f. 57v./58), sendo que, em 2007, Nair, avó de Carlos e genitora de Valfredo e Alberto, alienou o imóvel objeto do feito a Santo e Maria dos Anjos.

Ainda que os atuais residentes do imóvel afirmem desconhecer que o bem era objeto de litígio, consta na escritura de f. 289/289v. que o imóvel era, sim, objeto de disputa nos feitos 0433.00.012180-9 e 0433.02.046819-8, o que afasta a alegação de desconhecimento e posterior aquisição de boa-fé, observado o art. 457 do Código Civil:

“Art. 457. Não pode o adquirente demandar pela evicção, se sabia que a coisa era alheia ou litigiosa.”

Em decorrência da nulidade das escrituras de f. 14 e 17, também resta nula qualquer cláusula de usufruto em favor da Sra. Nair, decorrente de alienação do bem a Alberto.

Ainda que assim não fosse, reconhecendo-se a simulação dos negócios jurídicos registrados sob as escrituras de f. 14 e 17, mesmo que vigorasse qualquer cláusula de usufruto em favor da Sra. Nair, não caberia à mesma alienar o imóvel aos litisconsortes, afastando qualquer direito de Santo e Maria dos Anjos a permanecer no imóvel.

Nesse sentido, confirma-se a sentença que declarou a nulidade de todos os registros imobiliários efetuados junto à matrícula nº 20.335, f. 034, do Livro nº 2-1-AH do Cartório do 1º Ofício do Registro de Imóveis desta cidade, desde o registro R-02, restituindo a propriedade do imóvel ao de cujus Valfredo Carlos Damasceno, o qual deverá ser regularmente inventariado e partilhado.

Conclusão.

Por todo o exposto, nego provimento aos recursos. Deixo de fixar honorários recursais em face dos primeiros apelantes, já que o MM. Juiz fixou os honorários em patamar máximo na sentença.

Condeno os segundos apelantes ao pagamento de honorários recursais em 2% sobre o valor atualizado da causa, na forma do art. 85, § 11, do CPC/2015.

Custas pelos vencidos, na mesma proporção disposta na sentença.

Votaram de acordo com o Relator a Des.ª Teresa Cristina da Cunha Peixoto e o JD. convocado Fábio Torres de Sousa.

Súmula – NEGARAM PROVIMENTO AOS RECURSOS.

Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG
Extraído de Recivil

Notícias

Juiz determina que valor da venda de bem de família é impenhorável

Juiz determina que valor da venda de bem de família é impenhorável Magistrado considerou intenção da família de utilizar o dinheiro recebido para adquirir nova moradia. Da Redação terça-feira, 16 de abril de 2024 Atualizado às 17:41 "Os valores decorrentes da alienação de bem de família também são...

Cônjuge não responde por dívida trabalhista contraída antes do casamento

CADA UM POR SI Cônjuge não responde por dívida trabalhista contraída antes do casamento 15 de abril de 2024, 7h41 Para o colegiado, não se verifica dívida contraída em benefício do núcleo familiar, que obrigaria a utilização de bens comuns e particulares para saná-la. O motivo é o casamento ter...

Atos jurídicos e assinatura eletrônica na reforma do Código Civil

OPINIÃO Atos jurídicos e assinatura eletrônica na reforma do Código Civil Ricardo Campos Maria Gabriela Grings 12 de abril de 2024, 6h03 No Brasil, a matéria encontra-se regulada desde o início do século. A Medida Provisória 2.200-2, de 24 de agosto de 2001, estabeleceu a Infraestrutura de Chaves...

A importância da doação com usufruto vitalício e encargos

A importância da doação com usufruto vitalício e encargos Amadeu Mendonça Doação de imóveis com usufruto e encargos como alimentos promove transição patrimonial e segurança familiar, requerendo documentação precisa e compreensão legal. quarta-feira, 3 de abril de 2024 Atualizado às 14:39 Dentro do...