“O papel dos cartórios vai além da prestação de serviços, impactando positivamente a vida das pessoas trans”

“O papel dos cartórios vai além da prestação de serviços, impactando positivamente a vida das pessoas trans”

Em entrevista à Anoreg/BR, advogada especializada em Direito das Famílias, Sucessões e Direito Homoafetivo fala sobre o cumprimento do Provimento nº 73/2018

A Corregedoria Nacional de Justiça regulamentou o Provimento nº 73, de 28 de junho de 2018, que garante a alteração de nome e sexo de pessoas transgêneros no Registro Civil de Pessoas Naturais (RCPN). Direito que garante que as alterações poderão ser feitas sem a obrigatoriedade da comprovação de intervenção cirúrgica para mudança de sexo ou por meio de decisão judicial.

A Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg/BR) entrevistou a advogada especializada em Direito das Famílias, Sucessões e Direito Homoafetivo, Maria Berenice Dias, sobre o papel dos cartórios na execução da normativa e também sobre ações de combate à transfobia nas serventias do País.

Confira a íntegra da entrevista:

Anoreg/BR – Qual a importância da execução do Provimento nº 73/2018 da Corregedoria Nacional de Justiça, que permite a alteração do prenome e do gênero nos registros de nascimento e casamento de pessoa transgênero diretamente
nos Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN)?

Maria Berenice Dias – A população trans tem a sua identidade de gênero distanciada da sua identidade biológica, aparente e visível, e isso os coloca numa posição muito vulnerável perante a família, escola e sociedade. Devido ao preconceito que sempre acompanhou a população LGBTQIA+, os primeiros pedidos de adequação de nome e sexo dependiam de procedimento judicial, demoravam, eram realizadas por meio de audiências, laudos, e com exigência da comprovação de cirurgias. Eu fui a primeira a se posicionar contra isso. Afinal, não se pode impor que as pessoas se submetam a intervenções cirúrgicas para ter direito à própria identidade. Até que veio essa decisão fantástica do Supremo Tribunal Federal (STF), eu estava lá, foi muito emocionante. Onde se conseguiu a possibilidade desse registro ser feito diretamente no Cartório de Registro Civil por autodeclaração. Simples, eu me identifico com tal sexo e quero em função disso alterar o meu nome e também a identidade na minha documentação. Esse foi um grande avanço. Depois para regulamentar essa decisão, o CNJ editou essa resolução.

Anoreg/BR – Quais os principais desafios relacionados à execução do Provimento nº 73?

Maria Berenice Dias – No meu entender, são impostas exigências exacerbadas para o cumprimento do Provimento. É exigida uma lista absurda de documentos, 12 certidões. Basta refletir, quando alguém casa, qualquer um dos dois têm a possibilidade de alterar o nome. Não se pede nada, não é necessário juntar nenhuma negativa para a troca de nome quando se casa ou faça a união instável. Percebo que essas exigências são resultado de um ranço preconceituoso. Além disso, há um custo para essas certidões e essas pessoas que sempre foram marginalizadas, em geral têm baixa instrução, passam por dificuldades pra ingressar no mercado de trabalho, e diante disso eu não vejo como não dispensar o pagamento desses documentos.

Anoreg/BR – Qual o papel dos cartórios no atendimento às pessoas transexuais?

Maria Berenice Dias – O papel vai além da prestação de serviços, a atuação é na propagação do não preconceito, impactando positivamente na vida das pessoas trans. É poder contribuir com uma mudança muito importante na vida dessas pessoas. O reconhecimento do nome, da identidade, é algo libertador. O exercício pleno da cidadania e respeito à pessoa humana.

Anoreg/BR – Como os profissionais que atuam nos cartórios podem contribuir com a causa e no combate ao preconceito?

Maria Berenice Dias – É necessário ter alguém que os abrace. Vai além da execução do Provimento, é necessário ter profissionais dispostos a dar as pessoas trans o direito a garantia à própria cidadania. A gente tem que dar o que as pessoas não têm, o que as pessoas trans precisam é atenção e respeito. E quem tem que dar isso são os oficiais. Penso que foi dado um grande passo, mas ainda está havendo um não acompanhamento a esse passo. Não vejo nenhuma justificativa pra isso. Várias pessoas me procuram afirmando que enfrentam dificuldades para a emissão desses documentos. De um modo geral, as pessoas não se queixam dos serviços registrais. Principalmente agora que esses cargos são ocupados por pessoas concursadas, bacharéis em Direito, pondo fim a sucessão hereditária nas serventias. São profissionais altamente qualificados, então, não há o porquê existir tanta dificuldade.

Anoreg/BR – Quais são os impactos sociais com a implementação de serviços para
pessoas trans nos cartórios?

Maria Berenice Dias – Sem dúvida nenhuma, a construção de uma sociedade menos desigual, menos preconceituosa, porque proporciona a inclusão desta população na sociedade. Por exemplo, antes da possibilidade do casamento homoafetivo, num primeiro momento houve uma resistência dos oficiais. Mas antes dos tabelionatos fazerem, eu sempre fiz as uniões no meu escritório de uma maneira solene. O casamento nada mais é do que assinar um papel. Eu não vejo porque as pessoas que vão firmar o documento que reconhece o vínculo, a união estável, não vejam esse importante rito de passagem. Mas hoje, após um trabalho de formiguinha, eu fico muito satisfeita, porque alguns profissionais passaram a fazer essas solenidades dentro do ambiente do tabelionato. Essa é a forma de quebrar o preconceito dos próprios servidores e também dos familiares.

Anoreg/BR – Qual procedimento deve ser adotado para pessoas que não se
identificam com nenhum gênero (não-binário)?

Maria Berenice Dias – Os não-binários também têm direito a essa alteração. O procedimento é o mesmo definido pelo Provimento nº 73/2018. Porém, ainda não existe a possibilidade de mudança de gênero que inclua a opção “neutra” ou “não especificada”. Ou seja, qualquer indivíduo não-binário que deseja a mudança de nome tem que optar pelo sexo masculino ou feminino.

Anoreg/BR – Como avalia a atuação dos Cartórios de Registro Civil do Brasil?

Maria Berenice Dias – Vejo uma postura generalizada no País. Não vejo diferença nenhuma de estado para estado. Precisamos combater o preconceito arraigado na nossa cultura. Por exemplo, mesmo São Paulo que é altamente cosmopolita, ainda há muito conservadorismo. Compreendo as questões de ordem religiosa, mas a religião tem que ficar em casa, na igreja. Outro ponto importante, o registrador não pode olhar uma pessoa trans com reprovação e julgamentos. É preciso exercitar a empatia dentro dos cartórios. Está comprovado que a pessoa nasce trans. Quem somos nós para dificultar esse processo? O que pudermos fazer pra melhorar a vida das pessoas, deve ser feito.

Fonte: Assessoria de Comunicação – Anoreg/BR

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