A sucessão do cônjuge e do companheiro e o princípio da autonomia privada: Novos contornos e desdobramentos?
A sucessão do cônjuge e do companheiro e o princípio da autonomia privada: Novos contornos e desdobramentos?
Mariana Barsaglia Pimentel
A sucessão do cônjuge e do companheiro sob regime de separação de bens gera controvérsias quanto à possibilidade de renúncia sucessória e à autonomia privada.
quinta-feira, 31 de julho de 2025 Atualizado em 30 de julho de 2025 11:19
A sucessão do cônjuge e do companheiro é, atualmente, um dos temais mais controvertidos no Direito Sucessório brasileiro. Dentre as principais polêmicas que permeiam esta área do Direito Privado está a sucessão daqueles que optam pelo regime da separação convencional de bens.
A legislação hoje vigente (art. 1.829, inc. I, c/c art. 1.845 do CC), assim como a jurisprudência firmada pelo STJ1, não deixam dúvidas de que, ainda que se opte pelo regime da separação de bens, o cônjuge sobrevivente assumirá a condição de herdeiro e participará da concorrência sucessória quando da morte do outro. A mesma regra se aplica à união estável2. Isso significa que a incomunicabilidade patrimonial produz efeitos apenas em vida - durante a relação conjugal e convivencial ou no momento da dissolução do vínculo. Enquanto ambos os cônjuges e companheiros estiverem vivos, não terão direito à partilha dos bens individuais do um do outro (ainda que adquiridos durante o casamento ou a união estável). O cenário muda caso um deles venha a falecer: nesta hipótese, a comunicabilidade patrimonial será a regra.
Este estado de coisas, em tese, poderia ser afastado pelo exercício da autonomia privada - o que poderia ocorrer, por exemplo, pela via do pacto antenupcial ou do contrato de convivência. Há, contudo, significativa controvérsia doutrinária3 4 sobre a possibilidade de renúncia antecipada à herança pelos cônjuges e companheiros, especialmente em razão do que prevê o art. 426 do CC, que veda a celebração de negócios jurídicos sobre a herança de pessoa viva (pacta corvina): "Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva".
O PL 4/25, atualmente em trâmite no Senado Federal, dispõe sobre a reforma do CC de 2002. O Projeto contempla de forma expressa a possibilidade de renúncia sucessória entre cônjuges e companheiros. Segundo o texto proposto (art. 426, §2.º), "os nubentes podem, por meio de pacto antenupcial ou por escritura pública pós-nupcial, e os conviventes, por meio de escritura pública de união estável, renunciar reciprocamente à condição de herdeiro do outro cônjuge ou convivente".
Esta norma, todavia, ainda não está vigente no ordenamento jurídico brasileiro (e pode não vir a ser aprovada) - o que demanda a interpretação da legislação posta.
O art. 426 do CC refere-se a contrato, modalidade de negócio jurídico bilateral. Difere-se, pois, da renúncia, que é negócio jurídico unilateral. Pode-se sustentar, assim, que a literalidade do dispositivo (que se refere a contrato, apenas e tão somente) não abarca a hipótese de renúncia. Isso não impediu a existência de orientação no sentido de que a renúncia à herança em pacto antenupcial é inadmissível, como antes se observou.
No final de 2024, no julgamento da apelação cível 1000348-35.2024.8.26.0236, o TJ/SP, na contramão do que vinha decidindo até então5, reconheceu a possibilidade de os nubentes inserirem, no pacto antenupcial, cláusula de renúncia sucessória. Em acórdão proferido por maioria, o TJSP reformou a sentença que havia sido proferida em 1.º grau e julgou improcedente a dúvida sustida por Oficial de Registro de Imóveis, que havia obstado o registro da escritura pública de pacto antenupcial (com fulcro no art. 426 do CC).
Nos termos do voto-vencedor, proferido pelo desembargador Relator Francisco Loureiro: "A vedação da renúncia antecipada da herança parece não mais condizer com os anseios da sociedade atual. Ora, se o casal opta pelo regime de separação de bens, sua vontade seguirá a mesma lógica de não compartilhar o matrimônio com o fim da relação, seja tal fim operado em vida, ou com a morte. Com mais força ainda, revela a vontade dos cônjuges e companheiros se realiza mediante declaração expressa de vontade". Além disso, entendeu-se que o art. 426 do CC não incide nesta hipótese por dois motivos diversos: "em primeiro, porque a renúncia, ato unilateral por excelência, não se confunde com contrato; em segundo, porque o dispositivo veda a estipulação relativa à herança que diz respeito aos bens transmitidos por ocasião da morte, silenciando em relação ao direito sucessório disposição legal que justifica a atribuição da herança a alguém". Ressalvou-se, entretanto, que "o registro não significa a chancela judicial à validade da cláusula, mas tão somente que não se deve negar eficácia perante terceiros ao pacto antenupcial, até que em momento e na esfera própria a questão da nulidade eventualmente seja arguida e decidida na esfera jurisdicional"6.
Já no primeiro voto-divergente, proferido pelo desembargador Fernando Antônio Torres Garcia, constou que "na tradição do direito brasileiro o sentido e o alcance do art. 426 são perfeitamente inequívocos, e bastam para dizer [...] que o pacto antenupcial, tal como celebrado, não pode ser dado a registro, de lege lata, segundo a lei como está posta". No segundo voto-divergente, proferido pelo desembargador Beretta de Silveira, afirmou-se que "não se pode aceitar ou renunciar a herança em parte, sob condição ou a termo, em especial quanto à última por prever condicionante proibida pelo texto legal ('se a época do falecimento de qualquer um deles, a doutrina ou a jurisprudência permitir'). Logo, havendo nulidade absoluta, referida ilegalidade se estende à íntegra do escrito, situação a evidenciar, mais ainda, a proibição do registro"7.
A divergência de entendimentos que permeou o julgamento da apelação cível 1000348-35.2024.8.26.0236 ilustra a controvérsia existente sobre a matéria. Enquanto os votos-divergentes apresentam uma leitura mais "clássica" sobre a problemática, o posicionamento vencedor traz interpretação mais atualizada e condizente com os anseios da sociedade contemporânea.
Importante destacar que, consoante ali se decidiu por maioria, o registro do pacto antenupcial não imuniza, em termos absolutos, a cláusula de renúncia sucessória. O registro apenas faz com que o pacto produza eficácia perante terceiros. A validade jurídica da cláusula de renúncia pode ser posteriormente discutida e invalidada posteriormente (no inventário ou em ação anulatória).
Apesar do que dispõe o art. 426 do CC, parece correto o entendimento exarado pelo desembargador Francisco Loureiro no sentido de que neste caso não há propriamente contrato sobre herança de pessoa viva8. Além disso, a problemática pode ser analisada à luz dos novos e múltiplos arranjos familiares hoje existentes: com a concessão de uma maior liberdade aos cônjuges e conviventes para que façam escolhas em relação ao seu regime sucessório, privilegiam-se os diversos modos de se viver em família (que não se encerram no núcleo formado por um homem e uma mulher, unidos pelo matrimônio pela eternidade). Neste ponto, é possível citar, como exemplo, as denominadas "famílias recompostas": nos parece pertinente e legítimo que pessoas viúvas ou divorciadas, que ingressam em uma nova relação conjugal ou convivencial, expressem o desejo de proteger seus descendentes quando de sua morte.
Embora o julgado que aqui é objeto de análise tenha sido proferido para solucionar dúvida suscitada pelo Oficial do Registro de Imóveis, penso que a solução que ali prevaleceu pode ser estendida para além do direito registral. Com efeito, a aplicação do Direito Sucessório brasileiro, na contemporaneidade, exige a consideração do momento histórico vivido e, principalmente, a valorização da autonomia privada - princípio que tem sido reiteradamente reivindicado pelos próprios destinatários das normas jurídicas: os sujeitos de Direito.
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1 Pode-se citar como paradigma o acórdão proferido no REsp n. 1.430.763/SP:
"CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. CÔNJUGE. HERDEIRO NECESSÁRIO. ART. 1.845 DO CC. REGIME DE SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS. CONCORRÊNCIA COM DESCENDENTE. POSSIBILIDADE. ART. 1.829, I, DO CC. 1. O cônjuge, qualquer que seja o regime de bens adotado pelo casal, é herdeiro necessário (art. 1.845 do Código Civil). 2. No regime de separação convencional de bens, o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes do falecido. A lei afasta a concorrência apenas quanto ao regime da separação legal de bens prevista no art. 1.641 do Código Civil. Interpretação do art. 1.829, I, do Código Civil. 3. Recurso especial desprovido". (STJ, REsp n. 1.430.763/SP, d Relatora: Ministra Nancy Andrighi, Relator para acórdão: Ministro João Otávio de Noronha, 3.ª Turma, j. 19/8/2014)
2 Por força de decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, os regimes sucessórios aplicáveis ao casamento e da união estável foram equiparados. A questão foi enfrentada em maio de 2017 no julgamento dos Recursos Extraordinários n. 878.694 e 646.721 - com repercussão geral reconhecida. Naquela oportunidade, foi definido o Tema n. 809, declarando-se inconstitucional o art. 1.790 do Código Civil, que regulamenta o regime sucessório do companheiro e da companheira.
3 Para Rolf Madaleno, por exemplo, a possibilidade de renúncia prévia a direitos sucessórios pelos cônjuges se justificaria, dentre outros motivos, na medida em que "o próprio regime da separação de bens tem o inequívoco propósito de afastar a comunhão de bens, representando a renúncia de futura e incerta herança uma simples extensão deste [...] escopo" (MADALENO, Rolf. Renúncia de herança em pacto antenupcial. Revista de Direito das Famílias e Sucessões, Belo Horizonte, n. 27, 2018, p. 9-57).
Por outro lado, há quem entenda, como Giselda Hironaka e Flávio Tartuce, que a renúncia à herança antecipada por cônjuge ou companheiro, especialmente por intermédio de negócios jurídicos, não comporta guarida no ordenamento jurídico atual, em razão da via proibitiva e intransponível do artigo 426 do Código Civil - dependendo, portanto, de alteração legislativa (HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; TARTUCE, Flávio. Planejamento sucessório: conceito, mecanismos e limitações. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil, Belo Horizonte, v. 21, p. 87-109, jul./set. 2019. p. 98).
4 No âmbito jurisprudencial, a discussão ainda aparece de forma tímida (IBDFAM. Conselho Superior da Magistratura do TJSP proíbe renúncia de herança em pacto antenupcial. IBDFAM Notícias, 13 dez. 2023. Disponível em:
https://ibdfam.org.br/noticias/11391/Conselho%2BSuperior%2Bda%2BMagistratura%2Bdo%2BTJSP%2Bpro%C3%ADbe%2Bren%C3%BAncia%2Bde%2Bheran%C3%A7a%2Bem%2Bpacto%2Bantenupcial. Acesso em: 28 jul. 2025).
5 É possível citar alguns exemplos de decisões recentes proferidas pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo sobre a matéria:
(1) "REGISTRO DE IMÓVEIS - dúvida julgada procedente - Escritura pública de pacto de convivência em união estável - Regime convencional da separação total de bens - Existência de disposições no pacto estabelecido que, segundo o Oficial, não comportam ingresso no Registro de Imóveis porque ilegais - Renúncia à postulação de comunicação patrimonial, embasada na Súmula 377 do STF, que apenas reforça a incomunicabilidade de bens na vigência da união estável - Nulidade não configurada - Renúncia ao direito real de habitação - Renúncia TAMBÉM ao direito concorrencial pelos conviventes - Artigo 426 do Código Civil que veda o pacto sucessório - Sistema dos registros públicos em que impera o princípio da legalidade estrita - Título que, tal como se apresenta, não comporta registro - APELAÇÃO NÃO PROVIDA". (TJSP, Apelação Cível n. 1007525-42.2022.8.26.0132, Relator: Fernando Torres Garcia (Corregedor Geral), Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura, julgado em: 22/09/2023)
(2) "REGISTRO DE IMÓVEIS - dúvida julgada procedente - Escritura pública de pacto ANTENUPCIAL - Regime HÍBRIDO QUE MESCLA REGRAS DO REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS COM O DA SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS - Existência de disposições no pacto estabelecido que, segundo o Oficial, não comportam ingresso no Registro de Imóveis porque ilegais - Renúncia A ALIMENTOS - QUESTÃO NÃO AFETA AO PACTO ANTENUPCIAL - INTELIGÊNCIA DO DISPOSTO NO ARTIGO 1.639 DO CÓDIGO CIVIL - Renúncia TAMBÉM À CONCORRÊNCIA SUCESSÓRIA DO CÔNJUGE COM OS ASCENDENTES OU DESCENDENTES PREVISTA NO ARTIGO 1.829 DO CÓDIGO CIVIL - ARTIGO 426 DO CÓDIGO CIVIL que veda o pacto sucessório - afastamento dos frutos dos bens particulares de cada cônjuge da comunhão (artigo 1.660, incido V, do Código Civil) - cláusula válida - Sistema dos registros públicos em que impera o princípio da legalidade estrita - Título que, tal como se apresenta, não comporta registro - APELAÇÃO NÃO PROVIDA". (TJSP, Apelação Cível n. 1003090-14.2023.8.26.0577, Relator: Fernando Torres Garcia (Corregedor Geral), Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura, julgado em 30/11/2023)
6 TJSP, Apelação Cível n. 1000348-35.2024.8.26.0236, Ibitinga, Relator: Francisco Loureiro, Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura, julgado em 01.10.2024.
7 Julgado citado.
8 Pelos motivos transcritos acima.
Mariana Barsaglia Pimentel
Advogada, sócia diretora da área de Direito de Família e Planejamento Patrimonial e Sucessório do escritório Medina Guimarães Advogados. Doutoranda e mestra em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Fonte: Migalhas
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