A doação conjuntiva do art. 551 do Código Civil: O direito de acrescer e a ausência de transmissão sucessória

A doação conjuntiva do art. 551 do Código Civil: O direito de acrescer e a ausência de transmissão sucessória

Luciana Faisca Nahas
terça-feira, 9 de setembro de 2025
Atualizado em 8 de setembro de 2025 13:28

1. A doação como importante instrumento de transmissão de bens e direitos

A doação é um contrato no qual o doador, exercendo a sua liberalidade de disposição patrimonial, transfere bens ou vantagens para o donatário sem receber remuneração ou pagamento em contraprestação. Pode ter por objeto bens móveis ou bens imóveis, e pode ser celebrado de maneira verbal ou escrita.

Esta amplitude de utilização faz da doação um contrato extremamente democrático, e abrange desde simples doações de bens ou valores de pequena monta realizadas cotidianamente sem maiores formalidades pelos próprios doadores até a transmissão formal e solenizada de bens imóveis como parte de um planejamento patrimonial e sucessório mais complexo, aproveitando-se das modalidades e cláusulas especiais que podem ser manejadas pelos profissionais da área jurídica.

Entre as modalidades especiais de doação, iremos destacar neste texto a doação conjuntiva, realizada em favor de duas ou mais pessoas simultaneamente do mesmo bem, prevista no art. 551 do Código Civil, que estabelece um regime jurídico específico para essa situação, criando uma exceção à regra geral da divisão do bem e instituindo o chamado direito de acrescer. Este artigo visa analisar o tratamento legal e jurisprudencial da matéria, bem como as propostas de modificação apresentadas no PL 4/25.

2. A doação conjuntiva prevista no Código Civil

A doação conjuntiva é aquela em que a liberalidade é destinada a múltiplos beneficiários. A regra geral, estabelecida no caput do art. 551 do Código Civil, é simples: "Salvo declaração em contrário, a doação em comum a mais de uma pessoa entende-se distribuída entre elas por igual". A respeito da doação conjuntiva, conceitua Flávio Tartuce:

A doação conjuntiva é aquela que conta com a presença de dois ou mais donatários (art. 551 do CC), presente uma obrigação divisível. Em regra, incide uma presunção relativa (iuris tantum) de divisão igualitária da coisa em quotas iguais entre os donatários. Entretanto, o instrumento contratual poderá trazer previsão em contrário.

Desta forma, caso o instrumento de doação indique como donatários duas pessoas, presume-se que a cada um caberá metade do bem; se forem três donatários, um terço a cada um, e assim sucessivamente, conforme o número de beneficiados. O instrumento de doação, no entanto, poderá conter disposição diversa, indicando distribuição diferente da divisão do bem doado; a título de exemplo, poderia indicar dois donatários, e deixar a um deles dois terços do bem, e ao outro um terço. Neste caso, estamos diante do exercício da liberalidade, e a manifestação da vontade do doador pode ser exercida de acordo com a sua intenção. 

A doação conjuntiva forma um condomínio sobre o bem, de forma que todos os donatários se tornam coproprietários deste.

3. O direito de acrescer na doação conjuntiva

O direito de acrescer é conhecido do direito sucessório, sendo regulamentado em capítulo específico do direito sucessório, nos arts. 1.941 e seguintes do Código Civil. Além disso, o direito de acrescer também pode ser utilizado no usufruto instituído em favor de duas ou mais pessoas, desde que por disposição expressa, nos termos do art. 1.411.

Da mesma forma, seria possível que nas doações efetuadas a mais de uma pessoa em conjunto seja estipulado o direito de acrescer entre os donatários, prevendo que na morte de um dos donatários, a parte deste acresceria aos demais. Assim, se configurado o direito de acrescer, a parte do bem recebido por doação conjuntiva não irá compor o acervo hereditário do coproprietário falecido, mas sim irá subsistirá ao coproprietário sobrevivo, ampliando a sua parte.

É importante salientar que o direito de acrescer na doação conjuntiva de maneira convencional é reconhecido pela doutrina, ainda que possa ser alvo de debates. No entanto, dependerá de cláusula expressa neste sentido pelo doador ao realizá-la, já que o direito de acrescer não é regra geral prevista na doação, ao contrário do que acontece nas disposições testamentárias (art. 1.941). Nos dizeres de Tartuce:

Por regra, não há direito de acrescer entre os donatários na doação conjuntiva. Dessa forma, falecendo um deles, sua quota será transmitida diretamente a seus sucessores e não ao outro donatário. Mas o direito de acrescer pode estar previsto no contrato (direito de acrescer convencional) ou na lei (direito de acrescer legal). (TARTUCE, 2025)

Há, contudo, a previsão legal expressa de direito de acrescer caso os beneficiários da doação sejam casados entre si, constante no parágrafo único do art. 551. Este seria o direito de acrescer legal. Assim, com a morte de um dos cônjuges, a totalidade do bem doado passa a pertencer exclusivamente ao cônjuge sobrevivente. O bem não é dividido com os herdeiros do falecido nem precisa ser levado a inventário para essa finalidade.

O art. 551, parágrafo único, do CC, consagra uma hipótese de direito de acrescer legal, sendo aplicada quando os donatários forem marido e mulher. Nessa hipótese, falecendo um dos cônjuges, a quota do falecido é transmitida para o seu consorte, sendo desprezadas as regras sucessórias. (TARTUCE, 2025)

O direito de acrescer na doação conjuntiva entre marido e mulher vem sendo reconhecido e aplicado nos tribunais brasileiros, como se observa das decisões a seguir colacionadas que excluem bens e valores doados do inventário do cônjuge falecido: 

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO QUE DETERMINOU QUE O SALDO DO PRODUTO DE VENDA DE IMÓVEL FOSSE INVENTARIADO. BEM ADQUIRIDO PELO CASAL POR DOAÇÃO CONJUNTIVA. ALIENAÇÃO DE PARTE DELE PELOS CÔNJUGES PERFECTIBILIZADA ANTES DO ÓBITO. CUSTEAMENTO DO TRATAMENTO DE SAÚDE DO DE CUJUS. PARTE DA QUANTIA DEPOSITADA EM CONTA-CORRENTE. EXCLUSÃO DO ACERVO HEREDITÁRIO. DIREITO DO SOBREVIVENTE AO PRODUTO DE BEM DOADO. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 551 DO CÓDIGO CIVIL. DECISUM REFORMADO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. Nos termos do artigo 551, parágrafo único, do Código Civil, o bem doado ao casal (doação conjuntiva), diante do falecimento de um dos cônjuges, passa a pertencer, na sua totalidade, ao cônjuge sobrevivente. A interpretação que melhor se adequa aos termos da lei é a de que, não havendo dúvida de que o saldo existente em conta-corrente adveio de alienação de imóvel recebido por doação conjuntiva, o preço advindo de tal venda sub-roga-se na característica de bem doado, motivo pelo qual é excluído do acervo hereditário (TJ/SC - AI: 20110291454 Blumenau 2011.029145-4, Relator: Jairo Fernandes Gonçalves, Quinta Câmara de Direito Civil, Data de Julgamento: 8/11/12)

REGISTRO DE IMÓVEIS - Doação conjuntiva em favor de marido e mulher - Bem que, em virtude do direito de acrescer estabelecido no parágrafo único do art. 551 do Código Civil, não poderia ter sido inventariado e partilhado - Desqualificação correta da escritura de inventário e partilha - Apelação não provida. (TJ/SP - Apelação Cível: 1012088-83.2016.8.26.0037 Araraquara, Relator: Pereira Calças, Conselho Superior da Magistratura, Data de Julgamento: 15/8/17)

4. Não incidência de tributação quando configurado direito de acrescer

O direito de acrescer tem consequências também no âmbito tributário, uma vez que a consolidação da propriedade plena nas mãos do cônjuge sobrevivente não constitui uma nova transmissão causa mortis ou uma nova doação, mas sim de uma condição resolutiva do condomínio que existia sobre o bem.

Por essa razão, os tribunais têm decidido que não incide o ITCMD - Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação sobre a parte que acresce ao patrimônio do cônjuge supérstite. Neste sentido:

RECURSO ADMINISTRATIVO. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA. EXIGÊNCIA, PARA O REGISTRO DO DIREITO DE ACRESCER, DA COMPROVAÇÃO DE RECOLHIMENTO DO ITCMD PELA CÔNJUGE SUPÉRSTITE. SENTENÇA QUE MANTEVE A EXIGÊNCIA. DOAÇÃO CONJUNTIVA. FALECIMENTO DE UM DOS DONATÁRIOS. DIREITO DE ACRESCER. ART. 551 DO CÓDIGO CIVIL. FATO GERADOR NÃO CARACTERIZADO. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO NA LEGISLAÇÃO DE REGÊNCIA. PRECEDENTE DESTA CORTE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (TJ/SC - Recurso Administrativo: 0047796-79.2022, Relator: André Carvalho, Data de Julgamento: 13/10/23)

REEXAME NECESSÁRIO - APELAÇÃO CÍVEL - DOAÇÃO EM FAVOR DE AMBOS OS CÔNJUGES - ART. 551, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CC/02 - DIREITO DE ACRESCER - INCIDÊNCIA DO ITCD - IMPOSSIBILIDADE - AUSÊNCIA DE FATO GERADOR - SENTENÇA MANTIDA. I - Conforme disposto no parágrafo único do art. 551 do Código Civil de 2002, nos casos de doação feita indistintamente a ambos os cônjuges, com o óbito de um dos donatários, a doação subsistirá na totalidade para o cônjuge sobrevivo, sendo, portanto, caracterizado o direito de acrescer. II - Em se tratando de direito de acrescer, ante a inexistência de nova doação ou sucessão causa mortis, não ocorre o fato gerador do ITCD, pelo que não poderá ser exigido o tributo. (TJ/MG - AC: 51142987820188130024, Relator: Des.(a) Wilson Benevides, 7ª CÂMARA CÍVEL, Data de Julgamento: 20/8/19)

Assim, em se tratando de direito de acrescer, ante a inexistência de nova doação ou sucessão causa mortis, não ocorre o fato gerador do ITCMD, pelo que não poderá ser exigido o tributo. Essa característica torna a doação conjuntiva a cônjuges um instrumento eficaz de planejamento patrimonial, garantindo que o bem permaneça integralmente com o sobrevivente sem os custos e a burocracia de um inventário e sem a incidência de imposto de transmissão.

5. A proposta de modificação do art. 551 no PL 4/25

O projeto de reforma do Código Civil - PL 4/25 - apresenta modificações no art. 551, com a inserção de dois parágrafos sobre o assunto, ampliando e modificando o alcance atual da norma.

O primeiro ajuste sugerido pela comissão que elaborou o texto do projeto é a inclusão expressa da extensão do direito de acrescer também ao companheiro, o que é importante para trazer segurança jurídica e afastar o debate se seria aplicável ou não ao companheiro. Esta inclusão segue o sentido geral da reforma, que igualou os direitos patrimoniais da união estável e do casamento.

No entanto, a redação do sugerido paragrafo primeiro foi além da mera inclusão do companheiro: vincula a existência de direito de acrescer entre cônjuges ou companheiros a estipulação expressa neste sentido, ao contrário do que está previsto no atual parágrafo único do 551. Assim, caso aprovada a reforma, ainda será  possível a existência de direito de acrescer nas doações em favor de casal, no entanto dependerá de manifestação expressa neste sentido. Assim é a redação constante do projeto:

§ 1º. Se os donatários, em tal caso, forem casados entre si ou viverem em união estável, subsistirá na totalidade a doação para o cônjuge ou convivente sobrevivos, desde que haja estipulação expressa nesse sentido.

Além disso, é inserido um parágrafo segundo no art. 551 regulamentando a instituição de direito de acrescer convencional na doação conjuntiva, afastando qualquer debate doutrinário ou jurisprudencial sobre a possibilidade ou não da sua instituição. Assim, fica a redação: 

§ 2º. Se os doadores indicarem como donatários mais de uma pessoa, e pretenderem que, na falta de uma, os donatários remanescentes recebam a parte que ao outro cabia, devem expressamente fazer constar da escritura pública disposição fixando o direito de acrescer

O parágrafo segundo traz a necessidade de cláusula expressa, porém vincula a constar na escritura pública. Talvez pudesse ser apenas exigência de que fosse na forma escrita, ainda que particular, pois ainda que se compreenda que uma cláusula expressa deva vir na forma escrita para segurança jurídica, a escritura pública não é necessária para todo e qualquer tipo de doação.

6. Considerações Finais

A doação conjuntiva, especialmente a realizada entre cônjuges, é uma ferramenta jurídica de grande valor para o planejamento sucessório, uma vez que possibilita a utilização do direito de acrescer, e pode simplificar a transmissão de bens, evitando inventário na hipótese e afastando a incidência do ITCD sobre a parte acrescida.

Em sua configuração atual, a doação conjuntiva do art. 551 do Código Civil representa uma ferramenta de notável valor estratégico, cuja principal virtude é o direito de acrescer legalmente presumido entre cônjuges. Essa presunção simplifica a sucessão patrimonial, blinda o bem doado do processo de inventário e, segundo o entendimento dos tribunais, afasta a onerosidade do ITCMD.

Entretanto, o horizonte legislativo, delineado pelo PL 4/25, aponta para uma reconfiguração do instituto. A proposta de condicionar o direito de acrescer dos cônjuges a uma estipulação expressa, bem como de estender formalmente o direito aos companheiros, moderniza a norma, mas também lhe impõe uma nova complexidade, pois altera o seu reconhecimento da presunção da lei para a manifestação de vontade das partes. Ainda, apresenta de maneira expressa a possibilidade de instituir o direito de acrescer em qualquer doação conjuntiva. 

Dessa forma, o planejamento sucessório realizado por profissional da área jurídica deve considerar também a  possibilidade de direito de acrescer nas doações, em razão das vantagens que pode oferecer.

________

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002. 

BRASIL. Projeto de Lei nº 4, de 2025. Dispõe sobre a atualização da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e da legislação correlata. Senado Federal. Diário do Senado Federal, Brasília, DF, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 23/6/25. 

BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 4, de 2025. Autoria do Senador Rodrigo Pacheco. Brasília, DF: Senado Federal. Disponível aqui. Acesso em: 23/7/25. 

MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 5114298-78.2018.8.13.0024. Relator: Desembargador Wilson Benevides. 7ª Câmara Cível. Belo Horizonte, 20 de agosto de 2019. Publicado no Diário de Justiça em 26 ago. 2019.

SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Recurso Administrativo nº 0047796-79.2022. Relator: Desembargador André Carvalho. Florianópolis, 13 de outubro de 2023.

SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento nº 2011.029145-4. Relator: Desembargador Jairo Fernandes Gonçalves. Quinta Câmara de Direito Civil. Florianópolis, 08 de novembro de 2012.

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 1012088-83.2016.8.26.0037. Relator: Desembargador Pereira Calças. Conselho Superior da Magistratura. São Paulo, 15 de agosto de 2017. Publicado no Diário de Justiça Eletrônico em 23 ago. 2017.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil-vol. 3 - 20ª Edição 2025. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. E-book. p.405. ISBN 9788530996307. Disponível aqui. Acesso em: 6/9/25

Fonte: Migalhas

______________________________________________

 

                                                                                                                       

                 

Notícias

Bem de família pode ser tomado pelo banco?

Bem de família pode ser tomado pelo banco? Kelton Aguiar Descubra se o banco pode tomar seu bem de família e como se proteger com ajuda de um advogado especialista. segunda-feira, 25 de agosto de 2025  Atualizado às 11:19 Dívida com mais de 8 anos pode estar prescrita? Descubra se o banco...

Usufruto parental: proteção do patrimônio dos filhos

Com Partilha Usufruto parental: proteção do patrimônio dos filhos Bruno Araujo França 21 de agosto de 2025, 8h00 Apesar de não ser a regra, há situações em que, ao atingir a maioridade, o herdeiro descobre que seu patrimônio foi totalmente consumido, sem qualquer justificativa. Prossiga em...

Processo tramita 20 anos sem citação e juíza anula execução

Tardou e falhou Processo tramita 20 anos sem citação e juíza anula execução 14 de agosto de 2025, 12h58 Conforme fundamentação, não houve citação da parte executada no processo. Logo, o processo tramitou mais de 20 anos sem citação. Leia em Consultor...