Artigo – O regime processual de decretação do divórcio após a EC 66/10

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Artigo – O regime processual de decretação do divórcio após a EC 66/10

Julgamento antecipado parcial de mérito, direito potestativo e o divórcio unilateral

Flávia Pereira Hill, Renata Cortez Vieira Peixoto

A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no último dia 18 de março, julgou o Recurso Especial 2.189.143/SP, que teve por objeto decidir acerca da possibilidade da decretação do divórcio por julgamento antecipado parcial de mérito, inaudita altera pars.

Por unanimidade, nos termos do voto da relatora, a ministra Nancy Andrighi, decidiu-se que o divórcio, a partir da EC 66/2010, é um direito potestativo, de forma que a sua decretação não está condicionada a contraditório prévio, devendo ser apresentada a certidão de casamento atualizada e haver a manifestação de vontade de um dos cônjuges (autor da ação) para que se comprove o vínculo conjugal e a vontade de desfazê-lo, respectivamente.

Embora tenha reconhecido a viabilidade do deferimento liminar do divórcio, a 3ª Turma, levando em consideração que a decisão judicial em tela tem natureza definitiva, entendeu que a técnica correta a ser manejada pelos órgãos judiciais é o julgamento antecipado parcial de mérito, em conformidade com os arts. 355 e 356 do Código de Processo Civil, e não a tutela provisória.

O presente artigo tem por objetivo analisar o teor do julgado à luz das disposições do Código de Processo Civil de 2015, a fim de que se conceba um regime processual de decretação do divórcio como direito potestativo que congregue os postulados de Direito Civil, Direito Notarial e Registral e Direito Processual de forma harmônica e adequada, a bem da isonomia e da segurança jurídica.

Sede adequada para decretação do divórcio: julgamento antecipado parcial do mérito

 A natureza jurídica do divórcio como direito potestativo[1] afirmou-se com a EC 66/2010, que retirou qualquer condicionamento ao exercício desse direito, afastando a exigência de prazos ou causas específicas. O divórcio passou a depender exclusivamente da vontade unilateral de um dos cônjuges, de modo que a decretação judicial do divórcio não exige o consentimento do outro consorte, tampouco a demonstração de qualquer fato justificante.

A despeito da clareza da EC 66/2010, o processo de divórcio judicial, sobretudo em hipóteses de cumulação de pedidos (divórcio, partilha, alimentos, guarda etc.), ainda suscitava dúvidas quanto ao rito procedimental adequado para a sua decretação.

Tradicionalmente, a concessão do divórcio era postergada até o julgamento definitivo de todas as questões acumuladas, o que aumentava a morosidade e perpetuava situações de insegurança e desigualdade.

O julgamento do REsp 2.189.143/SP, nesse contexto, representa relevante avanço ao estabelecer que, em se tratando de direito potestativo, o divórcio pode ser decretado por meio do julgamento antecipado parcial de mérito, nos termos do art. 356 do CPC/2015.

Essa técnica permite a separação dos pedidos cumulados, autorizando o julgamento imediato daqueles que estejam “prontos para julgamento”, cabendo decisão interlocutória com força de sentença e aptidão para fazer coisa julgada material.

A decisão do STJ rechaçou a utilização da tutela provisória, inclusive da evidência, para a decretação do divórcio. A tutela provisória, segundo a ministra Nancy Andrighi, é inadequada por sua natureza precária e revogável, incompatível com a definitividade e a irreversibilidade do divórcio. Diferentemente, o julgamento antecipado parcial de mérito assegura a estabilidade da decisão e a produção de efeitos definitivos, inclusive a aptidão para averbação do divórcio no registro civil, após o trânsito em julgado.

O entendimento do STJ harmoniza-se com os princípios constitucionais do acesso à justiça, da celeridade e da dignidade da pessoa humana, ao viabilizar que o estado civil seja alterado de maneira célere e segura, sem sujeitar o interessado à demora processual decorrente das controvérsias acessórias eventualmente existentes.

Tutela provisória, coisa julgada e segurança registral

 O artigo 356 do CPC/2015 inovou ao prever o julgamento antecipado parcial do mérito, superando a lógica de que a sentença deveria abranger todos os pedidos e questões (princípio da unicidade da sentença). O julgamento antecipado parcial do mérito, embora formalmente interlocutório, possui natureza material de sentença, sendo apto a formar coisa julgada material.

A decretação do divórcio, por sua natureza definitiva e pela produção de efeitos imediatos e irreversíveis (rompimento do vínculo conjugal, alteração do estado civil, possibilidade de novas núpcias), demanda especial cuidado quanto à técnica processual utilizada. A concessão de tutela provisória, mesmo tutela da evidência, não se revela adequada, pois mantém a precariedade e a possibilidade de revogação ou modificação enquanto pendente o processo (art. 296, CPC).

Ainda que a tutela de evidência permita, excepcionalmente, a antecipação dos efeitos da sentença final sem demonstração de perigo de dano, seu caráter provisório e o regime jurídico do art. 311 do CPC não se adequam ao divórcio. O inciso IV do art. 311, por exemplo, exige contraditório prévio e veda a concessão liminar; os demais incisos não se aplicam à hipótese de direito potestativo ao divórcio.

Do ponto de vista registral, a averbação do divórcio no registro civil de pessoas naturais depende de prova do trânsito em julgado da decisão (art. 100 da Lei 6.015/73), justamente para garantir a irreversibilidade do ato e proteger a segurança jurídica das relações familiares. Admitir a averbação com base em decisão precária de tutela provisória seria incompatível com a gravidade e a definitividade do ato, expondo as partes ao risco de retrocessos e instabilidade.

Portanto, a técnica do julgamento antecipado parcial de mérito concilia a necessidade de celeridade na solução do pedido de divórcio com as exigências de estabilidade, segurança e definitividade que a matéria reclama.

A citação do réu no processo de divórcio

 O segundo ponto de debate diz respeito à necessidade, ou não, de prévia citação do réu para a decretação do divórcio via julgamento antecipado parcial de mérito. Se, por um lado, o divórcio é direito potestativo e não exige anuência do outro cônjuge, por outro, a citação é tradicionalmente vista como condição para a formação da relação processual e para garantir o contraditório.

O julgado do STJ, tendo em vista um caso concreto de violência doméstica, admitiu a decretação do divórcio sem necessidade de localização e manifestação do réu, valorizando o caráter potestativo do direito, a desnecessidade de dilação probatória e o adequado dimensionamento do tempo do processo. Determinou, porém, a comunicação posterior da decisão ao cônjuge, que poderá impugná-la por agravo de instrumento.

As autoras do presente artigo defendem que, mesmo diante de direito potestativo, a citação do réu deve ser realizada antes da decretação do divórcio[2], salvo exceções justificadas por situação excepcional, como a violência doméstica. O julgamento antecipado parcial de mérito insere-se no Capítulo X do CPC, após a fase postulatória e a citação do réu, devendo ser garantida a ciência e a possibilidade de manifestação do consorte, ainda que por edital, caso não seja encontrado.

O contraditório prévio é norma fundamental do CPC/2015 (art. 7º, parte final), consagrada em múltiplos dispositivos. O único caso de julgamento do mérito sem citação é a improcedência liminar dos pedidos (art. 332, CPC), hipótese favorável ao réu não citado. Já a decretação do divórcio é decisão de acolhimento do pedido, que encerra o casamento de forma definitiva.

A citação do réu cumpre não apenas a função de permitir eventual defesa — ainda que pouco provável em face do direito potestativo — mas também a de cientificar o cônjuge sobre a alteração do estado civil e as consequências pessoais e patrimoniais correlatas (partilha, alimentos, guarda etc.).

A posição defendida é a de que, para a decretação do divórcio, deve haver citação prévia do réu, podendo ser ficta (por edital) se não localizado, e que não se justifica busca incessante para localização, bastando o cumprimento dos requisitos do art. 319 do CPC e, se for o caso, a citação editalícia após tentativas infrutíferas e consultas a cadastros públicos.

Violência doméstica e a possibilidade de decretação do divórcio sem citação prévia

 Em casos de violência doméstica, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) prevê a possibilidade de decisões judiciais liminares, sem oitiva do réu, para proteção da vítima. O acórdão do STJ reconheceu, com razão, que nessas situações excepcionais, o contraditório pode ser postergado para proteger a integridade física e psicológica da vítima.

A ciência do réu sobre o ajuizamento da ação de divórcio, em contextos de violência doméstica, pode atuar como gatilho para a intensificação da violência, inclusive com risco à vida da parte autora. Nesses casos, a decretação liminar do divórcio, com posterior citação do réu apenas para ciência, revela-se medida de justiça material e proteção de direitos fundamentais, em consonância com o microssistema protetivo instituído pela Lei Maria da Penha.

Trânsito em julgado e averbação do divórcio

 O terceiro ponto relevante refere-se à necessidade (ou não) do trânsito em julgado da decisão de julgamento antecipado parcial de mérito para a averbação do divórcio no registro civil. O art. 100 da Lei de Registros Públicos condiciona a averbação à prova do trânsito em julgado, justamente porque a averbação não admite cancelamento ou anulação por simples desistência ou arrependimento.

A exigência do trânsito em julgado é, portanto, condizente com a gravidade e a irrevogabilidade do ato, protegendo a segurança jurídica das relações familiares.

Todavia, para abreviar o tempo do processo, pode o magistrado, ao decretar o divórcio, indagar às partes sobre a renúncia ao prazo recursal. Caso ambos renunciem, o trânsito em julgado pode ser certificado imediatamente, autorizando a averbação.

Outra possibilidade é a certificação do trânsito em julgado na própria sentença, caso tenha havido citação do réu, sem oposição ao pedido. Se a decisão decreta o divórcio, tecnicamente há preclusão lógica para ambas as partes e o trânsito em julgado poderia ser certificado.

Ressalte-se que, na prática, dado que a maioria dos recursos contra a decisão de divórcio é improvável, muitas vezes o prazo de agravo de instrumento (15 dias úteis) transcorre in albis, possibilitando a rápida certificação do trânsito em julgado e a expedição do mandado de averbação.

Considerações finais: divórcio unilateral na via extrajudicial

 A possibilidade de decretação do divórcio unilateral diretamente perante o registro civil, sem intervenção judicial, é tema de debate doutrinário[3] e legislativo[4]. Houve tentativas de regulamentação do divórcio unilateral extrajudicial por provimentos das corregedorias estaduais (Pernambuco, Maranhão), posteriormente suspensos por recomendação do CNJ (Recomendação 36/2019).

Tramitam no Congresso projetos de lei (PL 3457/2019 e PL 4/2025) que propõem a inserção do divórcio unilateral no ordenamento jurídico, permitindo que um dos cônjuges requeira o divórcio no registro civil, com notificação do outro consorte, inclusive por edital, e sem necessidade de intervenção judicial.

No PL 4/2025, que pretende modificar o Código Civil, há previsão de contraditório prévio, com a notificação pessoal do outro cônjuge ou convivente para conhecimento do pedido, dispensada a notificação se estiverem presentes perante o oficial ou tiverem manifestado ciência por qualquer meio. Admite-se, porém, a notificação editalícia.

Considera-se adequada a redação do dispositivo, porquanto se compreende como preferencial o contraditório prévio, especialmente para viabilizar a reconciliação do casal e a preservação da família. Porém, em alguns casos, a exemplo daqueles em que há violência doméstica contra a mulher, deve-se admitir o divórcio unilateral com contraditório postergado.

Deve-se dizer que o REsp 2.189.143/SP do STJ reforça o cabimento do divórcio unilateral, inclusive a via extrajudicial. Esse precedente, pelas razões já expostas, pode legitimar a regulamentação do tema por ato normativo do CNJ ou das corregedorias estaduais, admitindo-se o divórcio unilateral diretamente perante as serventias do registro civil das pessoas naturais.

Antes disso, todavia, notadamente em razão do teor da Recomendação 36/2019 do CNJ, seria necessária a fixação pelo STJ de tese vinculante sobre a matéria, por meio do julgamento de recurso repetitivo. Acredita-se que a há repetição de demandas em todo o Brasil a justificar tal iniciativa.

Se não houver repetição em múltiplos processos, pode-se cogitar da utilização do incidente de assunção de competência, não apenas no STJ como também nos tribunais de justiça, vez que a questão de direito é relevante e há grande repercussão social. Em havendo multiplicidade de demandas, a técnica adequada, no STJ, é a dos recursos repetitivos e, nos tribunais de justiça, a do incidente de resolução de demandas repetitivas.

Enquanto não regulamentado – por ato normativo do CNJ ou das corregedorias estaduais ou por lei –, entende-se que o divórcio unilateral deve ser decretado judicialmente por meio de decisão parcial de mérito, como assentado no REsp 2.189.143/SP, mas com contraditório prévio, podendo a averbação correspondente ser levada a efeito na serventia do registro civil das pessoas naturais onde registrado o casamento independentemente do trânsito em julgado da decisão.

[1] “Ao contrário do que se tem lido, é errado dizer que o direito ao divórcio se tornou potestativo por força da Emenda Constitucional 66. Esse direito sempre foi potestativo.

Afinal, trata-se do direito subjetivo de se obter uma modificação jurídica independentemente da vontade da outra parte da relação jurídica, que se sujeita a essa modificação. Ocorre que a natureza de direito potestativo que algum direito subjetivo tenha não é suficiente para permitir que se dispense o devido processo. Afinal, é preciso ouvir a outra parte antes de se decidir (salvo nos casos previstos no art. 9º, parágrafo único, do CPC, e com certeza a decretação do divórcio não se enquadra em qualquer delas)”. CÂMARA, Alexandre Freitas e HILL, Flávia Pereira. Tutela provisória inaudita altera parte para decretação de divórcio: uma perigosa contradição em termos.

Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/elas-no-processo/363449/tutela-provisoria-inaudita-altera-parte-para-decretacao-de-divorcio, capturado em 21.03.2025.

[2] PEIXOTO, Renata Cortez Vieira. O divórcio como direito potestativo e a sua decretação através de tutela provisória da evidência: uma análise sob os pontos de vista processual e registral. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-divorcio-como-direito-potestativo-e-a-sua-decretacao-atraves-de-tutela-provisoria-da-evidencia-uma-analise-sob-os-pontos-de-vista-processual-e-registral, capturado em 21.03.2025; CÂMARA, Alexandre Freitas e HILL, Flávia Pereira. Tutela provisória inaudita altera parte para decretação de divórcio: uma perigosa contradição em termos.

Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/elas-no-processo/363449/tutela-provisoria-inaudita-altera-parte-para-decretacao-de-divorcio, capturado em 21.03.2025.

[3] ALVES, Jones Figueirêdo. REsp 2.189.143-SP reforça cabimento do divórcio unilateral. Disponível em:

https://www.conjur.com.br/2025-mar-23/o-resp-2189143-sp-reforca-cabimento-do-divorcio-unilateral/, capturado em 25.03.2025.

[4] Foi apresentado o PL 3457/2019 no Senado, pelo senador Rodrigo Pacheco, que tem por finalidade regulamentar o divórcio impositivo nos mesmos moldes do provimento pernambucano, através da inserção de um art. 733-A no CPC/2015. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/137242).

Esse ano foi apresentado também no Senado o PL 4/2025, que pretende atualizar o Código Civil.

ALVES, Jones Figueirêdo. REsp 2.189.143-SP reforça cabimento do divórcio unilateral. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-mar-23/o-resp-212.189.143-sp-reforca-cabimento-do-divorcio-unilateral/, capturado em 25.03.2025.

CÂMARA, Alexandre Freitas e HILL, Flávia Pereira. Tutela provisória inaudita altera parte para decretação de divórcio: uma perigosa contradição em termos. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/elas-no-processo/363449/tutela-provisoria-inaudita-altera-parte-para-decretacao-de-divorcio, capturado em 21.03.2025.

PEIXOTO, Renata Cortez Vieira. O divórcio como direito potestativo e a sua decretação através de tutela provisória da evidência: uma análise sob os pontos de vista processual e registral. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-divorcio-como-direito-potestativo-e-a-sua-decretacao-atraves-de-tutela-provisoria-da-evidencia-uma-analise-sob-os-pontos-de-vista-processual-e-registral, capturado em 21.03.2025

Fonte: Jota
Extraído de AnoregBR

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