Impenhorabilidade de bem de família pertencente ao espólio utilizado por herdeiros como moradia

Impenhorabilidade de bem de família pertencente ao espólio utilizado por herdeiros como moradia

Lidia Noronha

STJ reafirma que bem de família do espólio usado como moradia é impenhorável, mesmo sem partilha formal, protegendo a dignidade e segurança dos herdeiros.

quarta-feira, 16 de julho de 2025 - Atualizado em 17 de julho de 2025 09:17

(publicado originalmente no Boletim Revista dos Tribunais Online | vol. 65/2025 | Jul / 2025 DTR\2025\7542, https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/document?stid=st-rql&marg=DTR-2025-7542)

Em maio de 2025, a 4ª turma do STJ reafirmou a impenhorabilidade do bem de família ao julgar recurso especial que envolvia a constrição de um único imóvel pertencente a espólio para garantia de dívida trabalhista atribuída à empresa da qual o falecido era sócio (REsp 2.111.839/RS). O tribunal local havia mantido o arresto sob o argumento de que, ausente partilha ou averbação na matrícula, os herdeiros não poderiam opor a proteção conferida pela lei 8.009/1990. O Tribunal Superior, porém, reconheceu que a caracterização do bem de família decorre de circunstâncias fáticas - neste caso, a utilização do imóvel como moradia de dois herdeiros, sendo um interditado - e não de formalidades registrais ou de partilha, determinando o cancelamento da constrição. O acórdão destacou que, à luz do princípio da saisine (art. 1.784 do CC), a herança se transmite imediatamente aos sucessores, conferindo-lhes as mesmas prerrogativas jurídicas do falecido, inclusive a de invocar a impenhorabilidade: trata-se de norma cogente, de ordem pública, voltada à tutela da moradia e da dignidade humana. Prevaleceu, portanto, o entendimento de que a impenhorabilidade do bem de família se aplica ao espólio, desde que o imóvel seja utilizado como residência familiar, e que a ausência de partilha formal não afasta a proteção conferida pela lei 8.009/1990.

Entre os fundamentos empregados, destacam-se: (i) a proteção à moradia e à dignidade da pessoa humana, assegurada pela Constituição Federal de 1988 e pela lei 8.009/1990, normas de ordem pública que não podem ser afastadas por formalidades cartoriais; (ii) a aplicação do princípio da saisine (art. 1.784 do CC), segundo o qual a herança se transmite imediatamente aos herdeiros no momento da abertura da sucessão, conferindo-lhes as mesmas prerrogativas jurídicas do falecido, inclusive a invocação da impenhorabilidade; (iii) a definição de que a caracterização do bem de família decorre das circunstâncias fáticas de sua utilização como residência, e não de aspectos formais como registro ou partilha, de modo que a mera ausência de averbação da partilha não desnatura a proteção legal; (iv) a interpretação ampliada de "entidade familiar" abarcada pela súmula 364/STJ, que reconhece a proteção do bem de família mesmo a pessoas solteiras, separadas ou viúvas, e, no caso concreto, também a irmãos, desde que utilizado como moradia habitual.

Ressalta-se o acerto da decisão ao afastar os fundamentos do Tribunal de origem, notadamente no que se refere ao fato de que não são aspectos formais registrais ou a realização de partilha elementos capazes de impedir a caracterização do bem de família, especialmente no caso concreto, que se debruça sobre hipótese de bem de família legal ou obrigatório, previsto na lei 8.009, de 29 de março de 1990, que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família.

A proteção jurídica ao bem de família emerge de direitos e deveres fundamentais, expressamente previstos em nossa Constituição Federal de 1988, e que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. Não há dúvidas de que a dignidade da pessoa humana, para além de "imperativo ético existencial, é também princípio constitucional contemplado na ordem jurídica brasileira como fundamento da República, perpassando, por sua força normativa, toda a racionalidade do ordenamento jurídico nacional", funcionando como verdadeiro "vetor fundamental na operacionalização dos institutos jurídicos, tanto os de Direito Público como os de Direito Privado".1

Convém destacar que a legislação brasileira também contempla a possibilidade de instituição voluntária de bem de família, nos termos do art. 1.711 do CC, permitindo a destinação de parte do patrimônio para a sua instituição, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da destinação. Recai sobre o bem de família voluntário todas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecidas em lei especial. Neste caso, porém, conforme assevera Rolf Madaleno, a abrangência foi ampliada para além da proteção da moradia familiar2, pois o art. 1.712 do CC admite a constituição de fundo patrimonial proveniente de valores mobiliários, cuja renda seja aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família.

É neste lócus, do bem de família voluntário ou convencional que caberia a verificação de elementos formais, uma vez que sua constituição exige o registro do título no Registro de Imóveis, nos termos do art. 1.714 do CC. Além disso, outra distinção relevante entre ambos reside no fato de que, no caso do bem de família legal, a proteção abrange todas as obrigações do devedor, ainda que o imóvel tenha sido adquirido durante o curso de uma demanda executiva. Por sua vez, a impenhorabilidade convencional (ou voluntária) é relativa, pois o imóvel apenas estará protegido contra dívidas posteriores à sua constituição, não servindo para afastar obrigações anteriores ao gravame, conforme assentado no AgInt no AREsp 2.010.681/PE, rel. min. Luis Felipe Salomão, 4ª turma, julgado em 25/4/2022, DJe 27/4/2022.

No caso em exame, observa-se que a sentença, mantida pelo Tribunal de origem, considerou que "o patrimônio do sócio responde pelas dívidas da empresa", determinando a manutenção do arresto do imóvel. O pedido de urgência de natureza cautelar foi formulado com o objetivo de evitar que os herdeiros e sucessores alienassem ou vendessem o imóvel antes da solução definitiva da execução trabalhista (proc. 0018200-62.1995.5.04.0012), cujo débito atualizado perfazia R$ 66.383,22, valor equivalente a 95% do capital social que o ex-sócio falecido detinha da sociedade.

Como se depreende do acórdão, a tutela de urgência cautelar foi obtida liminarmente para assegurar o direito, tendo sido confirmada em sentença, após o aditamento da petição inicial (art. 303, §§ 1º e 3º, do CPC/15), para conversão em ação de obrigação de fazer, cumulada com indenização por perdas e danos, pleiteando a manutenção do arresto. No voto, inclusive, restou consignado que se requereu o registro do arresto na matrícula do imóvel.

O informativo 789, de 3 de outubro de 2023, do STJ, esclarece que "o CPC prevê de maneira expressa o poder geral de cautela - que já deflui do texto constitucional - em seu art. 301, ao prever que a tutela de urgência de natureza cautelar pode ser efetivada mediante arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea para asseguração do direito". O informativo trata de pedido relativo à averbação premonitória para garantir eficácia do processo de dissolução de sociedade em conta de participação, nos termos dos arts. 300 e 301 do CPC, em razão de ser o único bem de propriedade da sócia ostensiva.

De forma análoga, ainda que o arresto importe constrição, não se equipara à expropriação, pois não transfere, de forma imediata, a titularidade do bem. O STJ já esclareceu que no arresto ocorre apenas a ineficácia da transmissão dominial (REsp 819.217/RJ, DJe 06/11/2009; REsp 487.921/SP, DJe 2/5/2013), diferentemente da expropriação, que consiste na retirada coativa da propriedade para satisfação do crédito, nos termos do informativo 600, de 26 de abril de 2017. Como reforço desse entendimento, a 2ª turma do STJ, ao julgar o AgInt no AREsp 2.360.631/RJ (rel. min. Herman Benjamin, DJe 2/5/2024), deu provimento ao recurso especial - afastando os óbices das súmulas 7 e 83/STJ - para admitir embargos de terceiro voltados a declarar a impenhorabilidade de imóvel pertencente a empresa cuja indisponibilidade fora decretada em processo fiscal, por se tratar da residência da genitora dos sócios e, portanto, bem de família estritamente necessário ao núcleo familiar, que em nada comprometia a eficácia da cautelar. A decisão evidencia, de um lado, que o simples ato cautelar de indisponibilidade ou arresto não configura expropriação patrimonial e, de outro, que a salvaguarda prevista na lei 8.009/1990 subsiste enquanto perdurarem os requisitos fáticos que identificam o bem como residência familiar; se tais requisitos se dissolvem, abre-se espaço para medidas constritivas efetivas.

Embora o STJ reconheça a possibilidade de análise de eventual impenhorabilidade de bem de família no âmbito de medida cautelar de arresto (REsp 727.240/RJ), tal constrição tem natureza provisória, e a discussão acerca da impenhorabilidade, inclusive para apurar as exceções previstas no art. 3º da lei 8.009/1990, demanda análise probatória, incompatível com o reexame de fatos em sede de recurso especial (súmula 7/STJ).

No entanto, no caso concreto, conforme consta expressamente do acórdão, mesmo reiterando que "a caracterização do bem de família decorre das circunstâncias fáticas", considerou-se como fato incontroverso que o imóvel era utilizado como residência de dois dos herdeiros do espólio.

A decisão do STJ no REsp 2.111.839/RS merece ser destacada por conferir segurança jurídica aos herdeiros, reafirmando a supremacia do direito fundamental à moradia sobre formalismos cartoriais, quando se cuida de bem de família legal, e alinhando-se ao mandamento constitucional de proteção da dignidade da pessoa humana. Trata-se de precedente de relevância prática inegável para advogados atuantes em contencioso cível e em consultoria patrimonial e sucessória, notadamente sob a perspectiva de um planejamento que se pretenda efetivo.

Cumpre registrar, todavia, que o precedente ora examinado não possui força vinculante, pois não se enquadra nas hipóteses do art. 927 do CPC. Nos termos desse dispositivo, apenas devem ser obrigatoriamente observados: (I) as decisões do STF em controle concentrado de constitucionalidade; (II) os enunciados de súmula vinculante; (III) os acórdãos proferidos em incidente de assunção de competência, em resolução de demandas repetitivas ou em julgamentos de recursos extraordinário e especial repetitivos; (IV) os enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional e do STJ em matéria infraconstitucional; e (V) a orientação firmada pelo plenário ou órgão especial ao qual o julgador está vinculado.

Assim, ainda que represente forte orientação persuasiva - sobretudo por reafirmar entendimentos consolidados do Tribunal Superior acerca da lei 8.009/1990 - a decisão comentada não impõe, por si só, obrigação de observância automática, embora deva ser considerada como sólido precedente para fins de estabilidade, integridade e coerência do sistema. Quer dizer, como bem afirma o acórdão, que a caracterização do bem de família, necessariamente decorre da análise de circunstâncias fáticas, seja porque existem exceções expressamente previstas na lei, ou, ainda,  porque depende da verificação de eventual abuso de direito e má-fé, o que pode afastar "a norma protetiva do bem de família, que não pode conviver, tolerar e premiar a atuação dos devedores em desconformidade com o cânone da boa-fé objetiva", nos termos da firme jurisprudência do próprio STJ (AgInt no REsp 1.668.243/PR).

_________

1 FACHIN, Luiz Edson; PIANOVSKI RUZYK, Carlos E. Dignidade humana (princípio da -) (no Direito Civil). In: TORRES, Ricardo Lobo; KATAOKA, Eduardo Takemi; GALDINO, Flavio (org.). Dicionário de princípios jurídicos. Supervisão de Silvia Faber Torres. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. p. 308.

2 MADALENO, Rolf. Direito de Família. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. E-book. p.1253. ISBN 9786559648511. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786559648511/. Acesso em: 03 jul. 2025.

Lidia Noronha
Mestre em Direito Empresarial e Cidadania no Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA (Bolsista CAPES). Especialista em Direito Constitucional e Democracia, em Direito Empresarial em Direito das Famílias e Sucessões. Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Integrante da Comissão de Direito das Sucessões da OAB/PR. Advogada e sócia do Fachin Advogados Associados.

Fonte: Migalhas

Artigo: STJ garante proteção do lar para além da morte – por Gabriela Alves

A proteção ao bem de família não é absoluta

                                                                                                                            

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