O direito à herança do cônjuge
O direito à herança do cônjuge
Regina Beatriz Tavares da Silva e Maria Luiza de Moraes Barros
Análise da sucessão do cônjuge no CC e na jurisprudência do STJ, nos regimes da separação legal e eletiva.
sexta-feira, 18 de julho de 2025
Atualizado em 17 de julho de 2025 14:50
O TJ/SP, em acórdão recente, aplicou a lei com precisão, decidindo, conforme o art. 1.829 do CC, que, na ausência de descendentes e ascendentes, o cônjuge sobrevivente é o único herdeiro, independentemente do regime de bens do casamento (TJ/SP, 4ª Câmara de Direito Privado, apelação cível 1010433-44.2024.8.26.0248, rel. des. Carlos Castilho Aguiar França, des. Mauricio Velho e des. Vitor Frederico Kümpel).
A disputa na herança deu-se entre a viúva e parentes colaterais do falecido, que se casou com idade superior a setenta anos.
O julgado esclarece que o art. 1.829, III, do CC não impõe distinção quanto ao regime de bens para fins de herança do cônjuge e que, na ausência de descendentes e ascendentes, o sobrevivente herda a totalidade da herança.
É destacada a distinção entre o regime de bens, que regula as relações patrimoniais no vínculo conjugal, e o direito sucessório, que disciplina a transmissão de bens por morte do cônjuge. Dessa forma, não há que se confundir meação com herança, tampouco presumir que a incomunicabilidade patrimonial do regime de separação implique sempre na ilegitimidade sucessória da viúva.
Também foi havida como descabida a alegação de que a ausência de testamento indicaria intenção do falecido em não beneficiar sua esposa.
Foram citados precedentes do TJ/SP e do STJ, destacando a consolidação do entendimento de que o cônjuge sobrevivente, inexistindo descendentes e ascendentes, sucede na totalidade da herança, independentemente do regime de bens adotado1.
Efetivamente, o regime de bens interfere na herança do cônjuge somente se o falecido deixou descendentes (CC, art. 1.829, I). Nesta hipótese, o cônjuge sobrevivente herda em concorrência com os filhos do falecido, sobre seus bens exclusivos, se o regime de bens foi a comunhão parcial, além de seu direito à meação sobre o patrimônio partilhável. Também dividirá a herança com os descendentes do falecido se o regime for da separação de bens, sendo aqui que se abre a porta para discussões, no nosso entendimento, evitáveis.
Sempre existiram 2 regimes de separação: i) a eletiva, que advém da escolha por pacto antenupcial, ou seja, quando os nubentes não desejam a comunhão parcial e através de escritura pública elegem estatuto patrimonial em que nada se comunicará entre eles na dissolução do casamento pelo divórcio; e ii) a que vigora por força de lei, quando as pessoas se casam como a maior idade, ou seja, nos casamentos em que um dos nubentes tem mais do que 70 anos.
A discussão ficou aberta sobre o regime da separação e o direito à herança do cônjuge sobrevivente em concorrência com os descendentes do consorte falecido desde a entrada em vigor do CC de 2002, por uma falha na citação feita entre parênteses no art. 1.829, I, que, ao se referir ao regime da "separação obrigatória de bens", como excludente da herança do cônjuge, remete para o art. 1.640, parágrafo único, sendo que este dispositivo trata do pacto antenupcial para que seja escolhido regime diverso da comunhão parcial. Há uma contradição intrínseca nesse art. 1.829, I, porque ao mesmo tempo em que cita a separação prevista no art. 1.641, II do CC (que se denominava obrigatória), referente ao casamento das pessoas com mais de 70 anos, remete a dispositivo que trata do regime de separação de bens para os que se casam com menos do que 70 anos.
Essa ambiguidade gerou entendimentos diversos na jurisprudência até que o STJ firmasse a posição de que a separação, prevista legalmente para os maiores de setenta anos, deve excluir o cônjuge da concorrência sucessória com os descendentes, enquanto a separação convencional gera essa concorrência, a partir de julgamento de relatoria do min. Ricardo Villas Boas Cueva, de 23/10/2014. A jurisprudência consolidou-se no sentido de que se deve distinguir o regime da separação (para aqueles que não desejam o regime da comunhão parcial de bens e optam por pacto antenupcial pela separação de bens) do regime da separação protetiva (regime para os maiores de 70 anos, ou 60 anos de idade antes da lei 12.344/10)2.
A matéria chegou a ser debatida anteriormente no STJ e até mesmo o jurista supervisor do PL do CC de 2002, o professor Miguel Reale, sustentou não ser aceitável que o cônjuge casado sob o regime de separação de bens, inclusive a eletiva, fosse herdeiro concorrente com descendentes, uma vez que isso contrariaria o princípio da unidade sistemática do CC. Admitir essa interpretação levaria ao esvaziamento do art. 1.687 sobre a separação de bens3.
Essa posição foi anteriormente adotada pelo STJ, inaugurado em julgamento de relatoria da min. Nancy Andrighi, de 1/12/2009, no sentido de que o cônjuge sobrevivente, no regime da separação convencional de bens, não deveria concorrer com os descendentes na sucessão. O fundamento foi o respeito à vontade dos cônjuges que estabeleceram a incomunicabilidade patrimonial por meio de pacto antenupcial, além da necessidade de preservar a unidade sistemática do CC4.
Mas, realmente, há diferença entre os regimes da separação eletiva e dos maiores de 70 anos, porque, enquanto o regime legal destes últimos exclui o cônjuge da herança em concorrência com descendentes, o regime convencional opera essa concorrência5. Aliás, essa interpretação do STJ seguiu a interpretação sistemática do CC, já que seria despicienda a norma prevista no art. 1.641, II, que estabelece o regime da separação de bens para os que se casam com mais de 70 anos, se esse regime gerasse direitos sucessórios ao cônjuge sobrevivente.
Ainda sobre regime de separação legal dos maiores de 70 anos e seus efeitos sucessórios, é preciso analisar a súmula 377 do STF, segundo a qual "No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento".
Em estudo detalhado, do ano de 2004, sobre a separação de bens advinda da lei, foi demonstrado o verdadeiro significado da referida súmula 377/STF, com análise de seus precedentes, que, por muito tempo, recebeu a interpretação jurisprudencial de que nos casamentos das pessoas idosas haveria comunhão de aquestos, como se fosse comunhão parcial de bens. Porém, essa compreensão se revelou equivocada passando-se a interpretar a súmula 377 de forma correta, com a exigência da comprovação de sociedade de fato na aquisição dos bens durante o casamento, para que haja direito patrimonial do cônjuge sobrevivente, na proporção de seu esforço6.
O STJ passou a entender que o regime de separação obrigatória de bens em casamentos ou uniões estáveis de pessoas maiores de 70 anos somente pode operar a comunicação de patrimônio se houver a prova do esforço comum, ou seja, de sociedade de fato, com o incremento do patrimônio do falecido diante do auxílio material ou laboral do sobrevivente, conforme julgado inaugural do ministro Luis Felipe Salomão, de 20107.
A razão desse entendimento é a vedação ao enriquecimento sem causa, sendo imprescindível a demonstração de sociedade de fato entre os cônjuges, caracterizada pela efetiva contribuição patrimonial ou pelo trabalho em favor do outro.
Posteriormente, em 2024, no Tema 1.236, sob a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, o STF firmou a seguinte Tese de Repercussão Geral: "Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no art. 1.641, II, do CC, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes, mediante escritura pública.". Assim foi facultada a modificação desse regime mediante escritura pública, com interpretação voltada à autonomia dos nubentes, mas com escolha clara e consciente de outro regime perante o Tabelionato de Notas8. Portanto, a norma não foi "revogada" pelo STF, mas interpretada de maneira protetiva, porque o regime legal ou padrão para os que se casam com mais de 70 anos continuou a ser o da separação de bens.
Note-se que nenhuma referência nessa Tese de Repercussão Geral é feita ao art. 1.829, I do CC, sendo que no que não há referência pelo STF em teses ali firmadas, não cabe ao intérprete fazer extensões interpretativas ao seu mero talante.
Desse modo, tendo em vista que o regime legal nos casamentos dos maiores de 70 anos é o da separação de bens, a ser modificado somente mediante escritura pública lavrada em Tabelionato de Notas, cabe a permanência da interpretação de que a norma do art. 1829, I deve continuar a ser interpretada conforme pensamento do STJ: se o falecido tem descendentes, não há herança para o cônjuge sobrevivente.
Quanto aos incisos II e III do art. 1.829 do CC, nos casamentos dos maiores de 70 anos, não há ressalva, de modo que o cônjuge sobrevivente concorre com os ascendentes do falecido, e na ausência de ascendentes, o consorte que sobrevive é herdeiro de toda a herança, sendo sua posição na ordem de vocação hereditária superior àquela dos parentes colaterais até o 4º grau.
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1 Entre os precedentes: STJ, 3ª turma, AgInt no EAREsp 1248601/MG, Rel. Min. Raul Araújo, j. 27/2/2019.
2 STJ, 3ª turma, EREsp 1.472.945/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Boas Cueva, j. 23/10/2014. STJ, REsp 1.430.763/SP, Rel. p/ acórdão Min. João Otávio de Noronha, julgado em 13/11/2014.
3 REALE, Miguel. O cônjuge no novo Código Civil. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 12 abr. 2003, Caderno Aliás, p. A2. Disponível em: https://www.estadao.com.br/cultura/o-conjuge-no-novo-codigo-civil/. Acesso em: 07/07/2025.
4 STJ, 3ª turma, REsp 992.749/MS, Rel. min. Nancy Andrighi, julgado em 1/12/2009.
5 TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz; BRITO, Laura Souza Lima. Sucessão do cônjuge e regime da separação de bens. In TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz; CAMARGO NETO, Theodureto de Almeida (Coord.). Grandes temas do Direto de Família e das Sucessões. São Paulo: Atlas, 2021, p. 343-362.
6 TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Regime da Separação de Bens Convencional e Obrigatória. In DELGADO, Mário Luiz; FIGUEIRÊDO ALVES, Jones (Coord.). Questões Controvertidas no Novo Código Civil. São Paulo: Método, 2004, v.2, p. 388-350.
7 STJ, 4ª turma, REsp 646.259/RS, Rel. min. Luis Felipe Salomão, j. 22/6/2010. No mesmo sentido: STJ, 3ª Turma, REsp 1.623.858/MG, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 21/11/2017.
8 Acórdão paradigma: ARE 1309642/SP, Rel. min. Roberto Barroso, j. 1/2/2024.
Regina Beatriz Tavares da Silva
Presidente da ADFAS - Associação de Direito de Família e das Sucessões. Doutora pela Faculdade de Direito da USP. Sócia fundadora e titular do escritório de advocacia Regina Beatriz Tavares da Silva Sociedade de Advogados.
ADFAS - Associação de Direito de Família e das Sucessões
Maria Luiza de Moraes Barros
Assistente acadêmica da ADFAS.
Fonte: Migalhas