Além do estudo, ingresso nas universidades depende de autorização do juiz
Divulgação/CNJ
Além do estudo, ingresso nas universidades depende de autorização do juiz
22/03/2016 - 11h20
H.C.C. estudou três horas por dia para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2015, com o objetivo de passar em um curso superior de Gestão Ambiental e conseguiu uma vaga em uma universidade particular por meio do Programa Universidade para Todos (ProUni). Ele foi um dos 203.602 beneficiados com bolsas de estudo em universidades particulares no país, mas ainda não sabe se poderá, de fato, frequentar alguma aula. H.C.C cumpre pena há 15 anos em um presídio paulista, mas depende da autorização do juiz para isso. Acusado do crime de roubo, tráfico de drogas e receptação, ele é um dos poucos dentre os 42.539 detentos das unidades penitenciárias de todo país que prestaram o Enem e conseguiram um bom resultado nas provas. No entanto, a reinserção no mercado de trabalho e na sociedade demanda mais que apenas estudo e dedicação.
Nos presídios paulistas, houve recorde de participações na última edição do Enem, com 12.028 pessoas presas realizando as provas. O número é maior do que os verificadas em anos anteriores: em 2014, foram 9.470 pessoas e, em 2013, 7.526 presos. Desse total, apenas dez conseguiram aprovações em universidades por meio do Enem, em cursos variados, como Direito, Teologia, Gestão Ambiental e Análise de Sistemas, dentre outros. “Acredito que passar em uma faculdade será um divisor de águas para que eu possa realizar o meu sonho de ser advogado”, disse H.C.C. de 35 anos. De acordo com ele, entrar na universidade não fazia parte dos seus planos antes de ser condenado. “Comecei a ter uma melhor percepção dessas necessidades durante o cumprimento da pena”, diz o reeducando.
O caso de um reeducando aprovado no Sistema de Seleção Unificada (Sisu 2015) que cumpre pena em um presídio de Fortaleza (CE) evidencia a distância que separa uma cela de uma sala de aula em uma universidade. L. F. foi um dos 11 internos do sistema penitenciário cearense selecionados no Sisu 2015, dentre 1.698 alunos inscritos no Enem, segundo a Secretaria da Justiça e Cidadania (Sejus-CE). No entanto, a rotina diária do jovem L. F. alterna momentos de esperança e desespero em relação ao futuro. Aprovado para cursar Ciências Sociais na Universidade Federal do Ceará (UFC) pelo seu bom desempenho no Exame, L. F. não sabe se poderá se matricular, porque depende de autorização judicial.
O sonho de fazer faculdade, no entanto, ainda o impede de desistir. Todos os dias, depois do café da manhã, recebe autorização para sair da cela e trabalhar na unidade prisional. Até a hora do almoço, percorre os corredores das alas recolhendo demandas dos colegas detentos, para encaminhar à direção da unidade prisional. São pedidos de audiência com a Defensoria Pública, de atendimento médico, de consultas ao andamento de processos, entre outros. L. F. ainda acredita na educação como saída para sua situação. Às tardes, o preso costuma ler livros de autoajuda, mas recentemente leu “O Príncipe”, de Maquiavel, clássico da Ciência Política, curso que pretende seguir caso seja autorizado pela Justiça. “Quero me sentir ser humano outra vez. A prisão tem um peso na situação existencial. Abala muito o ser humano. Não aceito pertencer a este mundo”, disse.
Não é a primeira vez que L.F. consegue passar na universidade. Em 2013, quando foi aprovado para cursar Direito em uma faculdade na sua cidade-natal, Umburetama, região norte do Ceará, teve seu pedido negado pela Justiça. “Se não derem autorização, vou pedir para voltar para minha cidade. Não consigo mais confiar. A demora (na resposta a seu pedido) vai fazendo a gente perder a fé. É tudo muito lento, estou totalmente desmotivado”, afirmou o jovem, que se mudou para a capital do estado na esperança de se preparar melhor para tentar uma vaga no ensino superior.
Descoberta da vocação - Muitos detentos descobrem uma aptidão profissional somente no presídio, o que é fundamental para que ele consiga traçar uma meta para a sua ressocialização. “Eu gostaria de cursar Sociologia, mas, no decorrer do meu cumprimento de pena, fui acusado de praticar uma falta grave, fato que não fiz, e comecei, então, a estudar o Código Penal. A partir desse momento, tive certeza de que serei advogado”, contou S.R.L., 44 anos. Ele conseguiu pelo ProUni uma bolsa de estudos no curso de Direito de uma universidade particular de Guarulhos (SP). S.L.R. estudou duas horas por dia para conseguir a vaga e atualmente elabora os recursos judiciais para outros reeducandos. “Encontrei muita facilidade para interpretar as leis”, afirmou. O reeducando foi condenado a aproximadamente 18 anos de pena pela acusação de tráfico de drogas, assalto, furto e receptação de mercadoria roubada, restando ainda cumprir dois anos e meio da pena.
O mesmo ocorreu com F.B., 34 anos, que obteve uma vaga por meio da nota do Enem em uma universidade particular paulista no curso de Design Gráfico. “Durante o cumprimento da pena, eu descobri o meu lado artístico e decidi fazer este curso para aprimorar a técnica”, disse o reeducando, que já cumpriu 15 anos de pena pelo crime de assalto e está há seis meses no regime aberto. Para ele, ter conseguido passar em uma universidade é essencial para sua mudança e o recomeço de uma nova vida. “Na minha família, todos se surpreenderam e, ao mesmo tempo, ficaram orgulhosos”, contou F.B
Aumento da procura - O número de candidatos presos no Enem/PPL em 2105 cresceu 44,3% no Ceará em relação ao ano anterior. “Os resultados têm revelado que a educação tem modificado a cultura prisional, pois os internos estão cada vez mais interessados em atingir níveis mais altos de escolaridade”, relatou a coordenadora escolar da Sejus-CE, Poennia Gadelha.
De acordo com informações da Sejus-CE, 18 candidatos-detentos conquistaram o direito a uma bolsa do ProUni. Parte deles estudou na Escola Aloísio Leo Arlindo Lorscheider. Segundo o diretor do estabelecimento, Raimundo Nonato, “a escola vê as seleções do Prouni e Sisu como oportunidades de inclusão social e não vai desistir não só de vê-los matriculados, como efetivamente cursando o nível superior, pois só assim considera concluída sua tarefa como educação básica”.
No Espírito Santo, 2.336 presos fizeram as provas do Enem em 2015. Desde o início da aplicação do exame nos presídios capixabas, o número de participantes cresceu mais de 6.000%. Em 2009, por exemplo, foram 36 inscritos. Atualmente, o Espírito Santo possui 3,5 mil detentos estudando em salas de aula, em 31 unidades prisionais, da alfabetização até o ensino médio, na modalidade de Educação para Jovens e Adultos (EJA). O acesso à educação é oferecido em parceria com a Secretaria de Estado da Educação (Sejus). O índice de pessoas privadas de liberdade estudando é de 18,5%, considerando a população carcerária atual do sistema prisional, que é de 18.933 detentos.
Primeiro lugar – Segundo informações da Secretaria de Justiça (Sejus) capixaba, dois internos conquistaram vagas no ensino superior com a nota do Enem 2015. Por conta de um bom desempenho no processo de seleção, um detento que cumpre pena na Penitenciária Semiaberta de Vila Velha classificou-se no ProUni com bolsa integral em 1º lugar no curso de Direito na Faculdade Novo Milênio e na Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha. Além disso, foi aprovado no SISU para o curso de Logística no Instituto Federal de Educação do Espírito Santo (Ifes). Outro caso foi o de uma presidiária do Centro Prisional Feminino de Colatina que deve cursar Pedagogia na Faculdade Castelo Branco, com bolsa de 40%. A mensalidade será custeada pela própria interna, com o salário que recebe pelo trabalho em uma empresa de alimentação, conveniada com a Sejus e que absorve mão de obra de detentas do sistema prisional.
Universidades nos presídios – O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) desenvolve o projeto “Universidade nos Presídios”, em fase de implantação de forma piloto no sistema carcerário do Espírito Santo, com o objetivo de proporcionar a integração de instituições de ensino superior e o sistema prisional para ações de estágio, pesquisa, extensão e residência multiprofissional, além de qualificar os internos. O projeto faz parte do terceiro eixo do Programa Cidadania nos Presídios, lançado em 2015 pelo presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Ricardo Lewandowski, para melhorar as rotinas de execução penal e qualificar a porta de saída do sistema prisional, devolvendo cidadãos mais reintegrados à sociedade.
Para a efetivação do projeto Universidade nos Presídios, as equipes acadêmicas estão sendo mobilizadas e as formas de cooperação entre o Poder Executivo e as instituições de ensino superior estão sendo discutidas. Pelo projeto, a própria academia será aberta para as pessoas privadas de liberdade, como também para os trabalhadores em serviços penais, de modo a permitir que a comunidade carcerária logre inclusão social por meio da educação e da qualificação profissional.
Saiba mais sobre o Cidadania nos Presídios.
Abaixo, dados do Ministério da Educação com o número de presos e socioeducandos que prestaram o Enem em 2015 e a população carcerária nos estados.

Amanhã, na terceira e última parte da matéria especial “Desafio do Enem atrás das grades” o esforço dos adolescentes que conseguiram boas notas no Enem e o aperfeiçoamento do sistema de ensino socioeducativo.
Luiza Fariello e Manuel Carlos Montenegro
Origem da Foto/Imagem/Fonte: Agência CNJ de Notícias
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Defasagem escolar estimula revisão do sistema de ensino socioeducativo
23/03/2016 - 11h26
Os poucos adolescentes no país que cumprem medida socioeducativa de internação e obtiveram sucesso no Exame Nacional do Ensino Médio para Pessoas Privadas de Liberdade (Enem PPL 2015) lutam agora pela oportunidade de cursar uma faculdade e assegurar um futuro melhor. Mas a baixa escolaridade impede avanços. Dos 21.823 menores em unidades socioeducativas no país, 3.043 se inscreveram para a prova em 2015 e, ao que se tem notícia, apenas 36 conseguiram aprovações por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) (Veja quadro abaixo).
Por conta disso, segundo a coordenadora-geral do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo da Secretaria dos Direitos Humanos (SDH) o governo deve adotar em breve, por meio de uma resolução que já está em fase de homologação, diretrizes específicas para o sistema de ensino socioeducativo, com escolarização seriada e integral, e não apenas pelo sistema de Educação de Jovens e Adultos (EJA). “A escolarização dos jovens é muito baixa. Em geral, quando eles chegam ao sistema socioeducativo, já foram expulsos primeiro da família e depois do sistema de ensino”, afirmou Vieira. Na opinião do coordenador-geral, a reinserção social dos menores passa necessariamente pela escolarização. “Ainda é um tema que temos muito a superar, mas temos avançado bastante nisso, com a criação, por exemplo, de carreiras específicas para professores no sistema socioeducativo”, observou.
Em Pernambuco, por exemplo, de acordo com informações da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Funase), dos 74 socioeducandos inscritos no Enem PPL 2015, 35 desistiram. Na Bahia, nenhum menor participante obteve pontuação para ingressar na universidade pelo Sisu. Mesmo assim, as notas dos candidatos internados em alguma das Comunidades de Atendimento Socioeducativo subiram na redação e na pontuação final. Resultado do esforço de educadores da Fundac, que incentivam o adolescente que deixa as unidades de internação a continuar com os estudos em liberdade. De acordo com a Coordenação de Educação da Fundação da Criança e do Adolescente do Estado da Bahia (Fundac), a rotatividade de alunos que entram e saem das unidades de internação impede um melhor desempenho nas provas do Enem.
O Diretor do Departamento de Atendimento Socioeducativo (DEASE) do Paraná adota política semelhante. Segundo Pedro Ribeiro Giamberardino, apesar de todo esforço, os profissionais do órgão não conseguiram que um adolescente se matriculasse no curso para o qual fora aprovado no SISU, após ser liberado pela Justiça. “O adolescente foi aprovado, porém, foi desinternado antes do processo de inscrições para o SISU. A equipe da Unidade prestou todas orientações para que realizasse sua inscrição, porém, ele não conseguiu a vaga”, relatou Giamberardino.
O trabalho da equipe resultou na aprovação de um dos 145 jovens internados que prestaram o Enem. O adolescente de 18 anos cursa atualmente Ciências Contábeis em uma faculdade de Curitiba. “Ele permanece na unidade durante o dia, vai ao curso com veículo oficial sem constrangimento no local de estudo e posteriormente retorna para pernoite. O adolescente cursa a faculdade no horário das 19h às 22h45”, afirmou o diretor do DEASE. Pelo desempenho de outros 31 adolescentes internados no Enem PPL, os jovens receberão o certificado de conclusão do ensino médio.
Novos hábitos - Na avaliação de internos e professores, além de ser uma oportunidade para o ingresso ao ensino superior, o Enem PPL tem contribuído para outros resultados importantes como a obtenção de certificados de conclusão do ensino médio ou a simples mudança de hábito.
Internado há um ano e quatro meses na Unidade de Internação do Recanto das Emas (Unire) pela acusação de roubo, L.F., 19 anos, conseguiu o certificado de conclusão do ensino médio por meio da pontuação no Enem PPL, após se dedicar em uma rotina de estudos bem diferente do contexto de tráfico de drogas em que estava inserido. “Aqui amadureci bastante. Não tiro só como atraso de vida, mas como experiência”, disse L.F., que pretende prestar o Enem novamente este ano com objetivo de obter pontuação suficiente para o curso de Antropologia ou Filosofia em universidades federais. Além da rotina de estudo diário na unidade socioeducativa, o jovem ressalta que o hábito da leitura – três horas por dia durante o banho de sol matinal – foi um fator que o ajudou bastante no bom desempenho na prova. “Ganhei um livro de Machado de Assis de presente de um agente e o hábito da leitura me ajudou muito na questão do vocabulário”, afirmou.
M.S., 18 anos, que conseguiu uma bolsa parcial pelo ProUni no curso de Educação Física em uma faculdade de Taguatinga, cidade do Distrito Federal, também relata mudança de vida. “Lá fora não tinha rotina certa, fumava maconha, roubava, traficava. Agora quero procurar emprego, passar em um concurso, ter uma mulher, um filho, coisas que antes eu achava que era pouco, mas agora eu vi que é tudo”, disse.
Para cursar a universidade, os jovens precisam de autorização do juiz, que decide conforme o caso, dependendo do comportamento e tempo de pena cumprido, dentre outros critérios. “Se não tiver autorização para fazer a faculdade, não vou desistir, vou tentar de novo, quem sabe uma nota maior”, afirmou o jovem V.W., que cumpre medida socioeducativa há dez meses e foi aprovado em Tecnologia da Informação pelo ProUni.
Sistema socioeducativo – Diferentemente das condenações impostas a adultos por algum crime, as medidas socioeducativas são avaliadas periodicamente pela Justiça, podendo ser extintas ao longo do período de três anos, prazo máximo da medida de internação. Conforme a avaliação feita pelos juízes responsáveis pelo acompanhamento das medidas socioeducativas, os adolescentes podem também progredir da internação para a semiliberdade, por exemplo. A peculiaridade do sistema socioeducativo afeta os serviços de educação prestado dentro das unidades.
Em unidades de internação, pode-se instalar uma escola ou um núcleo de educação, com aulas e anos letivos regulares. Nas unidades de internação provisória, onde adolescentes apreendidos por atos infracionais podem permanecer durante no máximo 45 dias, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), não existe essa possibilidade. Em unidades de semiliberdade, os adolescentes são matriculados e estudam nas escolas mais próximas das casas de semiliberdade – em alguns casos, são oferecidas atividades educacionais no contraturno.
Abaixo, dados do Ministério da Educação com o número de presos e socioeducandos que prestaram o Enem em 2015 e a população carcerária nos estados.
Luiza Fariello e Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias