A proteção ao bem de família não é absoluta

A proteção ao bem de família não é absoluta

Thallyta de Moura Lopes

STJ fixa teses que restringem a penhora do bem de família em hipóteses de hipoteca, exigindo demonstração de benefício direto à entidade familiar.

quarta-feira, 9 de julho de 2025 - Atualizado em 8 de julho de 2025 15:00

"Para os efeitos de impenhorabilidade, de que trata esta lei, considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente.". Assim dispõe o art. 5.º da lei 8.009, de 29 de março de 1990, ao conceituar o bem de família.

Ainda que a norma legal limite a noção do instituto, o conceito foi ampliado pela doutrina. Álvaro Villaça Azevedo1, por exemplo, define o bem de família como "um meio de garantir um asilo à família, tornando-se o imóvel onde ela se instala domicílio impenhorável e inalienável, enquanto forem vivos os cônjuges e até que os filhos completem sua maioridade."

Historicamente, o bem de família nem sempre esteve diretamente vinculado ao direito de família. No CC de 1916, sua previsão constava na parte geral, o que gerou críticas doutrinárias, por se tratar de instituto intimamente ligado à proteção familiar.

Com o advento do CC de 2002, o bem de família passou a figurar no Subtítulo IV, do Título II, tratando do direito patrimonial da família, nos arts. 1.711 a 1.722, reconhecendo-se, assim, sua natureza protetiva da entidade familiar.

Há duas espécies de bem de família (o legal e o voluntário). O bem de família legal é aquele automaticamente protegido pela lei 8.009/1990, independentemente de registro. Já o voluntário depende de instituição formal pelo proprietário, mediante escritura pública e registro em cartório, estando disciplinado nos arts. 1.711 e seguintes do CC.

A impenhorabilidade do bem de família tem por fundamento o direito social à moradia, previsto no art. 6º da Constituição Federal e visa garantir proteção mínima ao devedor e sua família.

O STJ ao editar a súmula 3642, estendeu a proteção ao imóvel de bem familiar: "O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas."

A súmula 4863 do STJ amplia ainda mais essa proteção: "É impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família.".

Não obstante, a proteção legal conferida ao bem de família não é absoluta. A própria lei 8.009/1990 elenca, em seu art. 3º, um rol taxativo de hipóteses em que a impenhorabilidade pode ser afastada, como nos casos de execução por pensão alimentícia, tributos relacionados ao imóvel, hipoteca, financiamento para aquisição do bem, fiança locatícia e créditos de trabalhadores da residência (esta última exceção revogada pela LC 150/15).

Recentemente, o STJ, no âmbito do Tema 1261, consolidou duas teses que restringem a exceção relativa à execução de hipoteca sobre o bem de família, prevista no inciso V do art. 3º da lei 8.009/1990, como uma das hipóteses em que a impenhorabilidade pode ser afastada, transcritas abaixo:

I) a exceção à impenhorabilidade do bem de família nos casos de execução de hipoteca sobre o imóvel, oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar, prevista no art. 3º, V, da Lei n. 8.009/1990, restringe-se às hipóteses em que a dívida foi constituída em benefício da entidade familiar: II) em relação ao ônus da prova, a) se o bem for dado em garantia real por um dos sócios de pessoa jurídica, é, em regra, impenhorável, cabendo ao credor o ônus de comprovar que o débito da pessoa jurídica se reverteu em benefício da entidade familiar; e b) caso os únicos sócios da sociedade sejam os titulares do imóvel hipotecado, a regra é da penhorabilidade do bem de família, competindo aos proprietários demonstrar que o débito da pessoa jurídica não se reverteu em benefício da entidade familiar.

O relator dos Recursos Especiais 2.093.929/MG e 2.105.326/SP, ministro Antonio Carlos Ferreira, foi responsável pela uniformização dessas teses. O ministro enfatizou, ainda, que o simples oferecimento do imóvel como garantia não implica renúncia à proteção legal, sendo imprescindível a análise do contexto da dívida.

No que se refere à primeira tese, o entendimento firmado pelo STJ é no sentido de que não basta que o imóvel tenha sido oferecido como garantia real, é necessário que a dívida tenha sido contraída em benefício da entidade familiar para que se configure a exceção à impenhorabilidade prevista no art. 3º, V, da lei 8.009/1990.

Um exemplo ilustrativo é quando um casal oferece como garantia seu imóvel para custear reforma da casa. Nessa hipótese, por ter beneficiado a entidade familiar, a execução pode ser iniciada em caso de inadimplemento. Agora, se o imóvel for hipotecado para garantir uma dívida alheia aos interesses da entidade familiar, como uma dívida empresarial, a impenhorabilidade subsiste.

Quanto à segunda tese, o STJ firmou o entendimento de que o simples oferecimento do imóvel como garantia não representa renúncia à proteção legal do bem de família. É necessário, portanto, analisar o contexto da dívida, especialmente quando se trata de hipoteca vinculada a débito de pessoa jurídica. Quanto à distribuição do ônus da prova, aplicam-se os seguintes critérios:

Situação:  Imóvel dado em garantia real por apenas um dos sócios da empresa.

 
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Regra: Impenhorabilidade do bem de família.

Ônus da prova: Cabe ao credor comprovar que a dívida da empresa beneficiou a entidade familiar.

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Situação: Imóvel dado em garantia real pelos únicos sócios da empresa, que são também os proprietários do bem.

Regra: Penhorabilidade do bem de família.

Ônus da prova: Cabe aos proprietários provarem que a dívida da empresa não beneficiou a entidade familiar.

No emblemático agravo de instrumento 2154516-75.2022.8.26.0000, que originou o REsp 2.105.326/SP (afetado), por exemplo, o TJ/SP confirmou a penhora do imóvel com fundamento no art. 3º, inciso V, da lei 8.009/1990, que autoriza a constrição do bem de família quando este foi oferecido como garantia hipotecária e a respectiva dívida tenha se revertido em benefício da entidade familiar.

No caso, o Tribunal entendeu que os valores da operação financeira garantida pela hipoteca foram efetivamente revertidos em favor da família dos agravantes, destacando que a participação da parte agravante no quadro societário da empresa devedora principal já é suficiente para presumir que ela se beneficiou do acréscimo patrimonial gerado pela operação.

O STJ já estava aplicando esses entendimentos, como nos agravos internos nos REsp 1.929.818/RJ, julgado em 11/3/2024; AgInt no REsp 1.924.849/SP, julgado em 09/10/2023; AgInt no AREsp 2.198.705/SP, julgado em 25/9/2023; AgInt no REsp 1466650/PR, julgado em 16/2/2017.

Enfim, essas recentes novidades jurisprudenciais indicam que o tema da proteção ao bem de família permanece suscitando polêmicas, o que exige análise cuidadosa, caso a caso, do contexto concreto para saber se, e em que medida, incide a proteção.

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1 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de Família: com comentários à Lei 8.009/90. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2010.

2 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 364. Revista Eletrônica de Súmulas, São Paulo, ano 2012, n.?32. Disponível em: https://www.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2012_32_capSumula364.pdf. Acesso em: 28 de junho de 2025.

3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n.?486, de 1º de agosto de 2012. Repositório de Súmulas do STJ. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/sumanot/toc.jsp?livre=(sumula%20adj1%20%27486%27).sub. Acesso em: 29 de junho de 2025.

Thallyta de Moura Lopes
Advogada no Duarte Garcia, Serra Netto e Terra, atuação em Contencioso Imobiliário. Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Contencioso Imobiliário Estratégico pelo Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (IBRADIM).

Fonte: Migalhas

                                                                                                                            

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