Artigo – Legitimidade do MP para propor ação de exclusão do sucessor por indignidade – por José Fernando Simão

Artigo – Legitimidade do MP para propor ação de exclusão do sucessor por indignidade – por José Fernando Simão

Publicado em 30/01/2018

Em tempos de pouco cuidado com as categorias jurídicas, em tempos em que se cativa a plateia por meio da principiologia, ainda que em afronta ao texto expresso de lei, em tempos em que o Supremo Tribunal Federal é aplaudido quando nega a aplicação da Constituição, em tempos em que o politicamente correto é a tônica no debate jurídico, que amordaça os docentes e empobrece o debate nas universidades, não recebi com surpresa a Lei 13.532, de 2017, que acresceu o parágrafo 2º ao artigo 1.815 do CC:

“§ 2º Na hipótese do inciso I do art. 1.814, o Ministério Público tem legitimidade para demandar a exclusão do herdeiro ou legatário”.

Do que se trata a questão? Uma breve digressão se faz necessária para explicar a alteração do Código Civil.

O sistema brasileiro, em matéria sucessória, vive um dilema criado por suas matrizes: o Direito romano e o Direito germânico. O Direito romano tomava por base a liberdade de testar em matéria patrimonial. Era a autonomia privada que norteava o sistema sucessório. A premissa romana era simples: se a pessoa amealhou seu patrimônio, cabe a ela e só a ela decidir o destino de seus bens. O Direito germânico, ao contrário, prestigiava a proteção da família, do grupo de pessoas que estava próximo ao testador, e, portanto, limitava a liberdade de testar. A existência da legítima, ou seja, de uma quota indisponível destinada aos herdeiros necessários ou legitimários é decorrência da tradição germânica.

O espírito de compromisso, nas palavras de Antonio Junqueira de Azevedo, pretende conciliar dois valores antagônicos: liberdade de testar (autonomia privada) e não liberdade de testar (intervenção do Estado para restringir a autonomia privada).

É da tradição luso-brasileira a existência da legítima em favor dos herdeiros necessários. Na vigência das Ordenações Filipinas, a legítima em favor de ascendentes e descendentes era de 2/3 dos bens do testador. Assim vejamos:

Livro IV – Título 91. “E falecendo filho ou filha com testamento (…) deve necessariamente deixar as duas partes de seus bens a seu pai ou sua mãe se os tiver e da terça parte poderá ordenar como lhe aprouver”.

“Livro IV – Título 92. E não havendo filhos legítimos herdarão os naturais todos os bens da herança de seu pai, salvo a terça parte, se o pai a tomar, da qual poderá dispor como lhe aprouver”.

No Brasil, a legítima, que sempre foi fixa, quer seja em favor de descendentes ou ascendentes, teve uma redução com a Lei Feliciano Penna em 1907[1]. O Código Civil de 1916 e o Código Civil de 2002 mantiveram a legítima em 50%, com uma diferença: houve um aumento do rol de herdeiros necessários, pois o artigo 1.845 do atual CC incluiu o cônjuge como herdeiro necessário.

De acordo com o espírito de compromisso, a sistemática germânica tem ganhado espaço, ou seja, a limitação à liberdade de testar tem prevalecido sobre a autonomia privada.

Pois bem. Se a legítima é a maior restrição à autonomia privada em matéria testamentária, a forma de privar o herdeiro necessário da legítima é a deserdação. O testador pode, desde que indicando uma das causas previstas nos artigos 1.814, 1.962 ou 1.963 do Código Civil, por testamento, afastar o herdeiro necessário da sucessão. Trata-se de numerus clausus, ou seja, não haverá deserdação se não nas hipóteses legais.

Mesmo ocorrendo a deserdação, por testamento, esta deve ser confirmada por ação a ser proposta pelos interessados após morte do testador[2].

Além da deserdação, da exclusão do herdeiro por vontade do testador, temos também a figura da indignidade.

Ocorrendo uma das causas do artigo 1.814 do CC, podem os interessados, após a morte do testador, propor a ação de indignidade para afastar o herdeiro, necessário ou facultativo, da sucessão. Essa ação pode ser proposta no prazo de quatro anos contados da abertura da sucessão[3].

Note-se que indignidade e deserdação são formas de exclusão do herdeiro ou legatário da sucessão, quer seja por ação de indignidade, quer seja por deserdação posteriormente confirmada por ação.

Em conclusão, indignidade e deserdação abrandam, suavizam, a proteção dos herdeiros necessários e são decorrência da autonomia privada, aumentando a liberdade de testar.

Quem pode propor a ação de indignidade ou a ação confirmatória da deserdação? Apenas aqueles beneficiados pelo afastamento do indigno ou deserdado da sucessão. Exemplos simples ajudam a compreender a questão.

Sendo dois irmãos os herdeiros, se um for excluído da sucessão, o outro recebe toda herança. Assim, há interesse na exclusão da sucessão. Por outro lado, se o excluído da sucessão tiver filhos, o irmão não tem interesse na propositura da ação, pois os beneficiados são os filhos do indigno ou deserdado que herdam por representação.

Qual é o conceito de interessado em sentido jurídico? A ação conduz a um benefício: receber quinhão ou bem que o autor da ação não receberia ou aumentar a quota-parte do herdeiro ou legatário sobre certo bem ou quinhão.

Dessa nota óbvia percebe-se que o MP não pode nem poderia propor a ação em questão, pois estará defendendo direito patrimonial e disponível de terceiro. Frise-se: patrimonial e disponível de um particular.

Poucas notas indicarão que a legitimidade do MP é fruto exclusivamente do politicamente correto, de uma resposta ao caso Richthofen e da vontade sanguinária e punitiva que reina nos corações de parte dos brasileiros neste quarto do século XXI.

a) O direito à herança é puramente patrimonial. Não há qualquer razão para o MP se intrometer em matéria patrimonial em que não há interesse de incapaz nem cuida de mínimo existencial.

b) O direito à herança é disponível. Ninguém é obrigado a ser herdeiro. Não só é possível a renúncia abdicativa como também a equivocadamente chamada renúncia translativa ou in favorem.

Quais são as consequências disso? Se, contra a vontade do herdeiro beneficiado pelo reconhecimento da indignidade, o MP propuser a ação e esta for julgada procedente, basta ao beneficiado efetivar a doação ao indigno da quota que lhe foi retirada. Não há expressa vedação, o que indica que o legislador nunca imaginou que alguém, que não o beneficiado, poderia propor a demanda.

Ainda, se o MP propuser a ação, como aparentemente indica a lei, e o beneficiado pela indignidade se opuser expressamente, teremos uma situação esdrúxula: o MP poderia prosseguir com a demanda? A resposta por óbvio é negativa. Seu resultado seria inútil e não desejado.

Tratar o Direito Civil como o Direito Penal, dando-lhe caráter punitivo, revela desvio de função da categoria e desconhecimento do Direito Privado.

Alguns afirmam que se trata de uma questão de ética. O Direito Civil não pode e não resolverá os dilemas éticos da humanidade. É forma de regular as relações particulares e resolver as questões concretas.

Por fim, Ana Luiza Nevares indica (em mensagem ao autor) que o correto seria, nessa hipótese, que se reconhecendo a indignidade por meio de ação proposta pelo MP, contra a vontade do herdeiro ou legatário beneficiado, o quinhão fosse destinado a um fundo especial. A sugestão é de lege ferenda. Atualmente, isso não é possível.

Se o sistema reformado fosse coerente, deveria o MP ser legitimado também para propor a ação que confirma a deserdação. Nem isso o legislador fez.

Em suma: quais os efeitos da legitimidade do MP para propor a ação de indignidade?

a) O MP não poderá propor a ação se os beneficiados forem maiores e capazes. A ação só pode ser proposta se os beneficiários pela indignidade forem menores ou incapazes.

b) A ação proposta pelo MP será extinta se o herdeiro ou legatário se opuser a ela. Assim, proposta a ação, antes da citação do réu ou réus, caberá ao juiz intimar os demais herdeiros beneficiados. Se todos se opuserem, a ação é extinta de imediato por manifesta inutilidade.

c) Se houver propositura pelos herdeiros ou legatários beneficiados, o MP não participará da demanda a qualquer título.

Outras interpretações atendem ao desejo punitivo e sanguinário que sobeja em parte dos brasileiros. Contudo, juridicamente, o Direito Civil resta agredido pela mudança inútil e perigosa.

________________________________________

[1] Artigo 2º, Decreto 1.839 de 31 de dezembro de 1907.
[2] Art. 1.965. Ao herdeiro instituído, ou àquele a quem aproveite a deserdação, incumbe provar a veracidade da causa alegada pelo testador.
Parágrafo único. O direito de provar a causa da deserdação extingue-se no prazo de quatro anos, a contar da data da abertura do testamento.
[3] Redação original do parágrafo único do artigo 1.815 do CC (atual parágrafo primeiro): “O direito de demandar a exclusão do herdeiro ou legatário extingue-se em quatro anos, contados da abertura da sucessão”.

José Fernando Simão é advogado, diretor do conselho consultivo do IBDFAM e professor da Universidade de São Paulo e da Escola Paulista de Direito.

Fonte: ConJur
Extraído de Colégio Notarial do Brasil

Notícias

Juiz determina que valor da venda de bem de família é impenhorável

Juiz determina que valor da venda de bem de família é impenhorável Magistrado considerou intenção da família de utilizar o dinheiro recebido para adquirir nova moradia. Da Redação terça-feira, 16 de abril de 2024 Atualizado às 17:41 "Os valores decorrentes da alienação de bem de família também são...

Cônjuge não responde por dívida trabalhista contraída antes do casamento

CADA UM POR SI Cônjuge não responde por dívida trabalhista contraída antes do casamento 15 de abril de 2024, 7h41 Para o colegiado, não se verifica dívida contraída em benefício do núcleo familiar, que obrigaria a utilização de bens comuns e particulares para saná-la. O motivo é o casamento ter...

Atos jurídicos e assinatura eletrônica na reforma do Código Civil

OPINIÃO Atos jurídicos e assinatura eletrônica na reforma do Código Civil Ricardo Campos Maria Gabriela Grings 12 de abril de 2024, 6h03 No Brasil, a matéria encontra-se regulada desde o início do século. A Medida Provisória 2.200-2, de 24 de agosto de 2001, estabeleceu a Infraestrutura de Chaves...

A importância da doação com usufruto vitalício e encargos

A importância da doação com usufruto vitalício e encargos Amadeu Mendonça Doação de imóveis com usufruto e encargos como alimentos promove transição patrimonial e segurança familiar, requerendo documentação precisa e compreensão legal. quarta-feira, 3 de abril de 2024 Atualizado às 14:39 Dentro do...