Artigo – Pequena propriedade rural e a jurisprudência quanto as suas exceções

Artigo – Pequena propriedade rural e a jurisprudência quanto as suas exceções

De início, não resta dúvidas que o agronegócio tem sido por anos a principal mola propulsora da economia brasileira, em especial pela extrema relevância e importância em produzir alimentos para o mercado externo que muitas vezes se beneficiam mais que o próprio interno.

Em termos práticos, a agricultura participou de 27,4% do PIB brasileiro, ou seja, aproximadamente um quinto de tudo que é gerado no Brasil provém de pessoas que atuam diretamente na agricultura e, respectivamente, como é cediço, a maioria esmagadora dos produtores brasileiros são classificados como “pequenos”.

Considera-se pequeno produtor rural aquele que não possua renda bruta anual acima de R$ 500 mil, nos termos do item 1.2.3, alínea “a”, do MCR. Resta caracterizado pequena propriedade rural, por sua vez, a área não superior a quatro módulos fiscais, sendo a dimensão variável com base nas característica econômicas e ecológicas de cada região, geralmente divulgados pelo Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), assim como preconiza o artigo 4º, inciso II e III, 5º, do Estatuto da Terra (Lei 4.504/64); que a mão de obra seja predominante originada da família e, por fim, que a renda da família seja provida de suas atividades rurais.

Porquanto, tais requisitos estão diretamente atrelados ao tema principal do presente estudo, qual seja, a garantia constitucional concedida ao pequeno produtor rural que assegura a impenhorabilidade absoluta do imóvel rural quando a dívida perseguida tenha sido contraída para o manejo de suas atividades produtivas.

Nesse sentido, o artigo 5º, inciso XXVI, da Constituição Federal assinala: “a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento”.

Com efeito, há anos existem discussões sobre a possibilidade de relativização da pequena propriedade rural, principalmente nas hipóteses em que o proprietário/produtor tenha oferecido o bem em garantia hipotecária. Levando em consideração a repercussão geral do tema e por se tratar de matéria Constitucional, o STF recentemente firmou precedente qualificado sobre a matéria.

A discussão gerou o Tema 961 da repercussão geral (ARE 1.038.507) que, por sua vez, assinalou a indisponibilidade da pequena propriedade, eis que assegura o direito fundamental do grupo familiar, benesse diretamente entrelaçada com os princípios basilares da dignidade humana e prevenção ao patrimônio mínimo, implicando dizer que a garantia não cede ante gravação do bem a hipoteca e/ou penhora.

Outro objeto pauta da discussão era se a pequena propriedade rural seria aplicada nas hipóteses em que for evidenciado a pluralidade de matrículas em nome do devedor. A Corte Suprema, por sua vez, foi categórica em afirmar que a quantia de imóveis é indiferente, desde que os bens constritos sejam áreas contíguas e não ultrapassem o limite pré-determinado (quatro módulos) e, claro, que os frutos extraídos da terra sejam a principal fonte de renda da família.

A decisão do STF foi escorreita, uma vez que o principal fundamento das casas bancárias para a mudança do paradigma seria a equiparação da garantia com o bem de família, em específico pela exceção trazida no artigo 3º, inciso V, da Lei 8.009/91:

“Artigo 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:

V – para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;”.

Nessa acepção, quando o imóvel bem de família for ofertado em garantia contratual por intermédio de hipoteca, o legislador pátrio deixou claro que haveria a renúncia expressa a referida impenhorabilidade. Outrora, vale ressaltar que são duas normas diversas, sendo uma ordinária (bem de família) e a outra constitucional (pequena propriedade rural).

Tecnicamente falando, não há discussão sobre a possibilidade de renúncia de direito proveniente em regramento ordinário, tendo em vista que a própria normativa traz hipótese expressa. Entretanto, a situação se difere quando falamos em abdicação de garantia constitucional, especialmente quando envolver direito fundamental ao cidadão e sem qualquer normativa que traga alguma exceção.

Outro aspecto importante gira em torno da hipossuficiência técnica e econômica do produtor rural em detrimento as instituições financeiras e grandes empresas distribuidoras de insumos, sobretudo no momento de estipulações de garantias e/ou cláusulas contratuais, por alguns motivos em específico:

a) As instituições financeiras de praxe não aceitam nenhum custeio e/ou investimento rural sem a indicação de imóvel em garantia hipotecária/contratual, inclusive nas hipóteses de crédito subsidiado (financiamentos que não presumem a vinculação de garantia). A propósito, por esse motivo os produtores rurais são ótimos pagadores, uma vez que no eventual inadimplemento o credor sempre terá um imóvel para satisfazer a dívida, que por muitas vezes é o bem herdado e transferido por inúmeras gerações da família;

b) A baixa escolaridade ou falta de conhecimento dos seus direitos, especialmente por se tratarem de pessoas “simples” sujeitas a um contrato extenso e de adesão repleto de cláusulas contratuais complexas, circunstâncias que impossibilitam discernimento prévio das possíveis consequências, tal situação é notória, bastando mero exercício de reflexão.

Quantas faculdades no âmbito nacional possuem o direito agrário como matéria nas respetivas grades de graduação? Pouquíssimas, isto é, não podemos cobrar da maioria dos profissionais do direito conhecimento prático extensão e ramificações das cláusulas contratuais, como podemos exigir de pessoa que passou a vida inteira trabalhando no campo?

c) A inexistência de apoio interno e governamental através de uma política agrícola efetiva, desde a divulgação de informações indispensáveis a aplicabilidade das normas rurícolas, tais como a readequação do cronograma de pagamento em casos de frustração de safra ou até mesmo e até mesmo a garantia da pequena propriedade rural, em outras palavras, difundir os direitos inerentes do homem do campo.

Por outro lado, caso o efetivo oferecimento da garantia contratual tenha se tornado um empecilho tão grande ao credor, qual seria o motivo das casas bancárias requererem sem exceção a vinculação de garantia de pequenas propriedades rurais, mesmo tendo todo o conhecimento e aporte jurídico?

Ora, a situação é deveras curiosa, uma vez que a mesma parte que estabelece requisitos para a liberação do crédito sem previsão legal, insiste em sustentar a possibilidade de renúncia de direito constitucional, com base em regramento infraconstitucional, circunstância que não pode ser exigida dos pequenos produtores que sequer possuem profissional para acompanhá-los no momento da contratação.

Ademais, tais argumentos foram em tese contrapostos nos votos vencidos dos ilustres ministros Nunes Marques, Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, e Luiz Fux que, resumidamente, assinalaram a ideia de não haver desproporcionalidade na exceção à impenhorabilidade da pequena propriedade rural, devendo ser legitimado a segurança jurídica e a boa-fé objetiva dos contratos, a fim de viabilizar a livre iniciativa estatal, tendo em vista que supostamente (com ênfase na última palavra) ninguém é obrigado a oferecer o imóvel em garantia.

Com a devida vênia, tais constatações não correspondem com a realidade, já que a vinculação de garantia é requisito indispensável para liberação do crédito, faltando, na realidade, sensibilidade para se colocar no lugar do produtor que fica dependente dos valores para dar início ao novo ciclo produtivo — até porque a maioria são de pequenos e não possuem capital próprio suficiente para manutenção de suas atividades.

Não obstante, quando o legislador pátrio implementou a pequena propriedade rural no ordenamento jurídico a ideia precípua nunca foi salvaguardar o patrimônio do devedor e incentivar o inadimplemento, mas sim proteger a sua subsistência e o exercício da atividade transferidas por anos e quiçá gerações da família, portanto, as circunstâncias não refletem tão somente no âmbito patrimonial, na verdade os efeitos vão muito além.

O grande cerne da questão envolve as ramificações desse entendimento minoritário do STF, naturalmente, começam-se surgir dúvidas como: a) até quando nossos tribunais assegurarão o direito a pequena propriedade rural nas hipóteses em que o bem fora ofertado em garantia contratual e b) Indo além, como fica a situação nos casos de alienação fiduciária?

Nesse ponto (alienação), não há penhora em si, mas sim a transferência administrativa e automática do bem sem qualquer intervenção do judiciário. A pergunta seria: como fica a impenhorabilidade de bem que, em regra, não houve penhora? Ainda, como poderá o produtor levantar matéria de direito personalíssimo como a impenhorabilidade se no momento da estipulação da garantia a propriedade do imóvel já foi automaticamente transferida ao credor fiduciário.

Vejam, nessas ocasiões ainda deverá ser aplicado o precedente que nas hipóteses de garantia hipotecária prevalece o direito a pequena propriedade rural? Ora, para alguns magistrados não seria o caso, justamente por conta dos motivos acima elencados.

Toda a problematização é potencializada com a ascensão de financiamentos rurais com pacto adjeto de alienação fiduciária que a cada dia mais preenche o espaço da hodierna garantia hipotecária. O instituto busca resguardar o credor que terá maior agilidade na perseguição do pagamento da operação inadimplida, ignorando por completo o custoso procedimento padrão de penhora, podendo transferir de forma permanente a posse e propriedade do imóvel sem a intervenção do poder judiciário.

Com efeito, existem acórdãos assinalando exceções à impenhorabilidade fundamentando no sentido de que o procedimento de alienação não comporta a existência processo judicial, respectivamente, não haveria como se falar em penhora e respectivamente impenhorabilidade da pequena propriedade rural.

Não obstante, há entendimentos o direito na alienação fiduciária pelo o fato da propriedade do imóvel não ser mais do produtor no momento da assinatura do contrato devido à natureza da garantia, tornando supostamente inviável alegar a impenhorabilidade de bem integrante de patrimônio alheio (banco/credor).

Não bastasse, outra situação extremamente recorrente é a indicação de imóveis que se enquadram no conceito pequena propriedade rural em garantia aos embargos à execução, ou pior ainda, nas hipóteses de acordo extrajudicial posteriormente homologado que indica o mesmo imóvel como garantia da obrigação.

Convém ressaltar que, por natureza, os acordos judiciais celebrados por produtores são pródigos ao inadimplemento, especialmente os que fixam pagamento à prazo, uma vez que o insucesso de um ano produtivo por motivos que muitas vezes fogem do seu controle (secas, pragas, questões mercadológicas e etc…) impactam diretamente sua capacidade de pagamento, não sendo surpresa os casos que dão continuidade aos atos expropriatórios no processo de execução pelo o descumprimento da obrigação.

Em tal hipótese é crível salientar que para que o instrumento de autocomposição seja homologado pelo respectivo Juízo, ambas as partes deverão ser acompanhadas por advogado para sua validade, ou seja, presume-se que o procurador advirta o representado de dos eventuais riscos do inadimplemento e explane de forma concisa a extensão das cláusulas anuídas.

Nesse sentido, diferente das hipóteses de alienação fiduciária, em que o produtor não possui acompanhamento técnico para destrinchar os efeitos e riscos na garantia, nos acordos extrajudiciais e até mesmo no oferecimento dos imóveis como penhora para atribuição de efeito suspensivo aos embargos, a situação é diferente.

Portanto, verifica-se que as mudanças enfrentadas no judiciário não foram propiciadas pelos produtores em si, mas sim dos profissionais do direito que atuam diretamente na área e se utilizam da pequena propriedade rural como “válvula de escape” para solução de qualquer problema, renunciando o direito do homem do campo sobre a ideia de que, independentemente do momento ou circunstância processual, a pequena propriedade não poderá ser objeto para sanar a dívida.

Resumidamente, o que verificamos na atualidade é a banalização do tema. Contudo, não há garantias no direito e a propriedade rural não pode ser utilizada como uma “carta na manga”, sob pena de inflição ao princípio da boa-fé objetiva.

Levando em conta a interdisciplinaridade e a “importação” do conceito de autopoise, o sociólogo alemão Niklas Luhmann já atrelava o direito como um organismo vivo, isto é, sendo passível de mudanças e adequações conforme os anseios da sociedade, os Tribunais pátrios vêm se adaptando a tais situações e modificando o entendimento previamente estabelecido, caracterizando como penhorável a pequena propriedade rural quando o bem for ofertado em acordo judicial:

“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALEGAÇÃO DE MÁ-FÉ EM CONTRARRAZÕES. OMISSÃO. VERIFICADA. ACÓRDÃO REFORMADO. ALEGADA IMPENHORABILIDADE POR SER BEM DE FAMÍLIA E PEQUENA PROPRIEDADE RURAL. AFASTADA. IMÓVEIS OFERECIDOS EM GARANTIA DE ACORDO HOMOLOGADO JUDICIALMENTE. AUSÊNCIA DE BOA-FÉ EVIDENCIADA. PRECEDENTE DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MANUTENÇÃO DA PENHORA INCIDENTE SOBRE OS IMÓVEIS. EMBARGOS ACOLHIDOS COM EFEITO INFRINGENTE” (TJPR — 16ª C.Cível — 0053258-40.2019.8.16.0000 — Irati – relator: desembargador Paulo Cezar Bellio — J. 31.08.2020.)

Claro, para quem atua diretamente nessas espécies de demanda sabe muito bem que as instituições financeiras não fazem acordos extrajudiciais sem uma garantia, o que na maioria das vezes acaba sendo o mesmo bem utilizado na época de assinatura do contrato em si. Portanto, remete-se a mesma ideia de não ser uma “faculdade” a garantia, nem na elaboração do financiamento e sequer nos acordos extrajudiciais.

Por fim, denota-se que estamos passando por mudanças no âmbito do direito agrário, situação que eventualmente será objeto de futuro recurso repetitivo para a unificação do entendimento que, na sua gênese, sempre buscou prevalecer o produtor e hodiernamente já não é mais uma unanimidade, precisando todos os aspectos serem postos em uma balança, desde a atuação do advogado, banalização do tema e o que autorizaria ou não a relativização de uma garantia tão importante e que certamente poderá prejudicar de forma imensurável a agricultura brasileira.

[1] https://www.jornalcontabil.com.brT/qual-a-diferenca-entre-produtor-rural-e-agricultor-familiar/#.Yla_UsjMLIV

Alisson Augusto Blank da Rocha é advogado e pós-graduado em Prática Avançada nos Tribunais Superiores pelo Damásio.

Fonte: ConJur
Extraído de Anoreg/BR

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