STJ DEFINE QUE USO DO IMÓVEL ESTIPULA TEMPO DE POSSE PARA USUCAPIÃO
STJ DEFINE QUE USO DO IMÓVEL ESTIPULA TEMPO DE POSSE PARA USUCAPIÃO
4 de julho de 2025
Pela primeira vez, a 3ª Turma analisou o critério que determinará qual o tempo de posse para registro da propriedade.
Recentemente, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que é o uso do imóvel e não a sua localização o que determina se há usucapião rural, que exige ocupação do imóvel por menos tempo do que o urbano geral. Essa é a primeira manifestação de turma da Corte nesse sentido. A decisão foi unânime.
O usucapião rural exige posse ininterrupta por cinco anos (artigo 1.239 do Código Civil), enquanto o usucapião urbano geral requer 15 anos (artigo 1.238).
O tema foi julgado em um processo em que o ocupante, originalmente, alugava a terra. O contrato de arrendamento é de maio de 1999. Em 2008, ele foi notificado extrajudicialmente para desocupação e não saiu. O dono da terra pediu na Justiça a rescisão do contrato, que alegou ser por prazo indeterminado, o despejo e a condenação ao pagamento do arrendamento mensal vencido, desde novembro de 2002.
Já o ocupante afirmou que, com o vencimento do contrato, em maio de 2002, desocupou o imóvel. Mas, por não conseguir entrar em contato com o proprietário e diante do “abandono do bem”, retornou à propriedade e retomou o plantio de hortaliças. Alegou ainda que não ocorreu a prorrogação do contrato, mas que ele manteve a posse contínua e sem oposição sobre o imóvel rural por mais de cinco anos. Por isso, pediu a aquisição do bem por usucapião e a condenação do autor por litigância de má-fé.
O ocupante alegou também que a natureza rural do bem deve levar em consideração a “destinação do imóvel, previsto expressamente no Estatuto da Terra e respectiva regulamentação”. Contudo, a justiça local descaracterizou o usucapião rural.
O Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS) decidiu que não é possível reconhecer o prazo de propriedade por meio do usucapião especial rural (artigos 1.239 do Código Civil e 191 da Constituição Federal) porque o imóvel está localizado em zona urbana.
Pelos dispositivos, aquele que não for proprietário de imóvel rural ou urbano e ocupar, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família e fixando moradia, terá a propriedade.
A perícia judicial apontou que o imóvel está localizado em perímetro urbano, o que afastaria a possibilidade de enquadramento na modalidade de usucapião especial rural, segundo o TJ.
Inconformado, o ocupante recorreu ao STJ. Para chegar à conclusão de que o critério deve ser o uso econômico do bem e não o endereço dele, o relator na 3ª Turma, ministro Humberto Martins, tomou emprestado uma definição da 1ª Seção da Corte em um julgamento tributário.
Ao analisar a incidência do Imposto Territorial Rural (ITR) ou do Imposto sobre Propriedade Territorial Urbana (IPTU), prevaleceu na 1ª Seção o critério de “destinação” em vez de “localização” para a cobrança (Tema nº 174). Na ocasião, com efeito repetitivo, a Corte decidiu que não incide IPTU, mas ITR, sobre imóvel localizado na área urbana do município, desde que comprovadamente utilizado em exploração extrativa, vegetal, agrícola, pecuária ou agroindustrial.
O relator citou ainda que, em se tratando de desapropriação para efeito de reforma agrária, a 1ª Seção decidiu que, mesmo o imóvel localizado em zona municipal urbana pode ser sujeito à “desapropriação da grande propriedade rural improdutiva”, desde que a sua exploração econômica seja rural (AR 3.971).
“Precedente tem potencial de impacto direto em outras ações” — Rodrigo Forlani
Naquele julgado, os ministros consideraram que apesar de o critério de definição da natureza do imóvel não ser a localização, mas a sua destinação econômica, os municípios podem, observando a vocação econômica da área, criar zonas urbanas e rurais – e mesmo que um imóvel esteja em zona municipal urbana, poderá ser classificado como rural, dependendo da sua exploração.
Para Martins, a definição do critério da destinação ou exploração econômica do imóvel, e não a sua localização, para configurar a usucapião, está adequada a uma interpretação “sistemática e teleológica” do direito de propriedade e do cumprimento da sua função social. O ministro citou a intenção do legislador em prestigiar o possuidor que confere função social ao imóvel rural.
Considerando o critério de interpretação usado pelo TJMS (localização do imóvel), o processo foi devolvido para reexame dos fatos e verificação se atende aos requisitos do artigo 1.239 do Código Civil. No STJ, a decisão transitou em julgado.
Um recurso apresentado ao STF não foi aceito. Na decisão, o ministro Nunes Marques afirmou que a discussão sobre a possibilidade de aquisição da propriedade do imóvel situado em zona urbana, ainda que a destinação preponderante seja para atividades rurais, não é constitucional e demanda análise de fatos e provas. Na prática, a palavra final é a do STJ.
O advogado da parte que pediu o usucapião, Leonardo Ranña, disse esperar, após a vitória no STJ, que o juiz de primeiro grau observe as provas que corroboram a tese do usucapião rural. Ele ainda observa que, na decisão, o STJ considerou outras situações não exatamente idênticas ao usucapião rural para vislumbrar que deveria privilegiar a função social da propriedade. “Cumprir a função social da propriedade é a razão de ser do usucapião rural”, afirmou.
Como não há outra decisão da 3ª ou da 4ª Turmas (que também pode julgar o assunto) nesse sentido, para Ranña, o recente acórdão sinaliza que deve-se considerar que os imóveis destinados ao desenvolvimento de uma atividade agropastoril estão submetidos ao usucapião rural independente de estarem dentro ou fora do perímetro urbano.
No caso concreto, a área está em região nobre e era usada para a produção de hortaliças e gado. “Não era mais de 50 hectares e ele ficou mais de cinco anos consecutivos, seguindo o contrato de aluguel, mas, depois, voltou ao imóvel por mais cinco anos sem pagar aluguel”, diz. Após isso, o proprietário tomou providências (Resp 1932802).
Para Regina Céli Silveira Martins, advogada do VBD Advogados, o alargamento do conceito de que quem define o tipo de imóvel, se rural ou urbano, é o proprietário em sua utilização, nada mais é do que a conclusão do entendimento já consolidado do STJ quando se trata da incidência de imposto. “Na prática, reforça a garantia de direitos ao pequeno agricultor, que dá à terra sua função social, já protegido pela Constituição”, afirmou.
A decisão é inédita, segundo Rodrigo Forlani. Porém, Forlani pondera que existem muitas decisões no sentido contrário. “Tem decisões concedendo a usucapião mesmo quando o imóvel tem área menor do que o módulo rural, mas desde que em área rural”, disse.
Ainda de acordo com o advogado, apesar de não ser vinculante, o precedente tem potencial de impacto direto em outras ações judiciais em curso, especialmente naquelas em que pequenos produtores, mesmo residentes em zonas urbanas, exercem atividades produtivas típicas da zona rural. “Ao deslocar o foco da análise da mera localização formal para a efetiva função desempenhada pelo imóvel, a decisão amplia o alcance da usucapião especial prevista no artigo 1.239 do Código Civil”, afirmou.
Procurado pelo Valor, o advogado do proprietário da terra não retornou até o fechamento da edição.
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR BEATRIZ OLIVON — DE BRASÍLIA
EXTRAÍDO DE Bonetti & Associados