A ineficácia da venda a non domino na alienação fiduciária e a prevalência dos direitos reais

A ineficácia da venda a non domino na alienação fiduciária e a prevalência dos direitos reais

Daniel Fioreze

A venda a non domino na fiduciária é ineficaz e preserva a titularidade real, reforçando a distinção entre direitos reais e pessoais no imóvel.

quinta-feira, 24 de julho de 2025  Atualizado em 23 de julho de 2025 12:14

A segurança das transações imobiliárias e a higidez das garantias de crédito são fundamentais para a economia. Na alienação fiduciária, a natureza real do direito do credor fiduciário define contornos claros que se impõem a terceiros, mesmo àqueles adquirentes de boa-fé. A distinção entre direitos reais e pessoais e as características próprias da alienação fiduciária justificam juridicamente a ineficácia da venda de imóvel sem a anuência do proprietário fiduciário e afasta quaisquer equívocos interpretativos sobre estes institutos.

O CC brasileiro estrutura-se a partir de uma distinção essencial entre direitos reais e direitos pessoais. Essa separação é determinante para a compreensão de diversos institutos jurídicos, especialmente aqueles relacionados a bens e garantias. Os direitos patrimoniais de caráter pessoal estão predominantemente disciplinados no CC no direito das obrigações (arts. 233 a 420 e 854 a 965), no direito contratual (arts. 421 a 853) e no direito de empresa (arts. 966 a 1.195). Existem previsões de natureza pessoal também nos livros dedicados ao direito de família e ao direito das sucessões. Por outro lado, os direitos patrimoniais de natureza real estão previstos no Livro III do CC, sob o título "Direito das Coisas" (arts. 1.196 a 1.510). A distinção sobre os institutos é imprescindível para a compreensão dos efeitos das obrigações e do poder de disposição sobre bens.

O direito pessoal estabelece uma relação jurídica entre sujeitos determinados, na qual um deles (credor) pode exigir do outro (devedor) uma prestação específica. A eficácia do direito pessoal, via de regra, é inter partes, vinculando exclusivamente os participantes da relação negocial. A obrigação pessoal possui caráter transitório e exaure-se com o cumprimento da prestação devida. O vínculo principal do direito pessoal estabelece-se com a pessoa do devedor e seu patrimônio, e não diretamente com a coisa que possa ser objeto da prestação. Já o direito real é um poder jurídico direto e imediato, exercido sobre uma coisa, dotado de eficácia erga omnes. Isso significa que sua oponibilidade se estende a todos. Uma das principais características do direito real é a aderência à coisa (jus persequendi), que faculta ao titular persegui-la em poder de quem quer que a detenha ou possua. Tais direitos, quando incidentes sobre imóveis, têm sua constituição e publicidade aperfeiçoadas com o registro no Cartório de Registro de Imóveis (arts. 1.227 e 1.245 do CC). A propriedade confere ao titular as faculdades de usar, gozar, dispor da coisa e reavê-la de quem a possua ou detenha indevidamente (art. 1.228 do CC).

Nos contratos de alienação fiduciária, embora o devedor fiduciante mantenha a posse direta do imóvel, a propriedade resolúvel transfere-se ao credor fiduciário. A consequência prática dessa estrutura é a ineficácia, em relação ao credor fiduciário, de qualquer negócio jurídico de compra e venda realizado pelo devedor fiduciante com terceiros, sem a sua expressa anuência. Nesses casos, em que inexiste anuência do credor fiduciário, está-se diante de uma venda a non domino, ou seja, uma alienação realizada por quem não detinha a qualidade de proprietário para dispor sobre o bem. Essa ineficácia, frente ao proprietário fiduciário, impõe-se mesmo que o terceiro adquirente aja de boa-fé, pois prevalece o direito real do credor fiduciário. A relação de direito pessoal havida entre o terceiro adquirente e o devedor fiduciário não se sobrepõe ao direito real garantido ao credor fiduciário. A propriedade fiduciária, sendo um direito real, adere à coisa, acompanhando-a em qualquer modificação de sua posse ou detenção, característica própria do direito de sequela. Desta forma, o negócio jurídico celebrado pelo devedor fiduciante com o terceiro é ineficaz em relação ao credor fiduciário, o que implica que o imóvel não pode ser excluído da garantia sem a prévia e integral satisfação do crédito. O art. 29 da lei 9.514/1997 é claro ao exigir a anuência expressa do credor fiduciário para a transmissão dos direitos do fiduciante.

Recentemente, o STJ, no julgamento do REsp 2.130.141/RS, que afastou a aplicação analógica da súmula 308 em contratos de alienação fiduciária e, um dos fundamentos para a decisão, foi justamente, a distinção entre os institutos de direitos patrimonial. A hipoteca e a alienação fiduciária, apesar de serem garantias reais sobre bens imóveis, possuem naturezas jurídicas e regimes jurídicos distintos. A súmula 308 do STJ estabelece que "a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel". A ratio decidendi dessa Súmula está vinculada a precedentes que tinham como pano de fundo o SFH - Sistema Financeiro da Habitação, regime que possui normas de proteção específicas em favor dos adquirentes de boa-fé (terceiros em relação aos sujeitos da hipoteca). À época, a súmula foi concebida para salvaguardar consumidores que, após a quitação de seus imóveis, viam-se confrontados com a hipoteca constituída entre a construtora (devedora) e a instituição financeira (credora), situação frequentemente agravada pela insolvência da incorporadora.

Contudo, essa ratio decidendi não se estende à alienação fiduciária. Na hipoteca, o devedor hipotecário detém a propriedade do imóvel, oferecendo-o em garantia, enquanto o credor hipotecário detém um direito real sobre coisa alheia. A posse do imóvel permanece com o devedor. Diferentemente, na alienação fiduciária, o devedor fiduciante transfere a propriedade resolúvel do imóvel ao credor fiduciário. O devedor fiduciante mantém apenas a posse direta do bem, atuando como mero depositário, ao passo que a propriedade indireta e o domínio resolúvel pertencem ao credor fiduciário. O credor fiduciário, portanto, não possui um direito real sobre coisa alheia, mas sim a própria propriedade do bem, ainda que com finalidade de garantia e sob condição resolutiva. A súmula 308 do STJ, ao estabelecer uma exceção à regra geral do direito imobiliário sobre a prioridade registral em casos de hipoteca no SFH, não pode ser aplicada por analogia à alienação fiduciária. A impossibilidade decorre precisamente da ausência de similaridade normativa e da natureza distinta dos direitos envolvidos.

Nesta lógica jurídica, a decisão tomada pelo STJ reafirma a precisão dos institutos jurídicos e assegura, ao credor fiduciário, proteção contra negócios realizados pelo devedor fiduciante sem a sua expressa anuência. A preferência do direito patrimonial do credor fiduciário, mesmo diante de uma relação hígida entre o devedor e o terceiro de boa-fé, é, portanto, uma - dentre outras - consequência lógica da natureza do direito real decorrente da alienação fiduciária, em detrimento aos direitos pessoais. Nestes casos, a perfectibilização do direito pessoal, para ser oponível ao credor fiduciário, exige a anuência do proprietário do imóvel. Sem tal concordância, o que se tem é uma limitação inquestionável sobre a capacidade de disposição sobre o bem por parte do devedor fiduciante, diante da ineficácia das alienações realizadas sem a anuência do credor fiduciário, ou melhor, do legitimado jurídico a dispor sobre a propriedade.

Daniel Fioreze
Sócio do escritório Silva e Silva Advogados Associados e diretor do núcleo de recuperação judicial de empresas e falências. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria - RS (UFSM). Possui pós-graduação em Direito Tributário e Aduaneiro pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e em Direito Processual Civil pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus (CEDJ). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Santa Maria - RS (FADISMA). Contato: daniel@silvaesilva.com.br

Fonte: Migalhas

                                                                                                                            

                 

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