A má-fé como fator limitador da impenhorabilidade do bem de família em cenários de fraude

A má-fé como fator limitador da impenhorabilidade do bem de família em cenários de fraude

Fernanda Rodrigues Endrissi

Discussão sobre fraude na alienação de imóvel e proteção do bem de família destaca o conflito entre boa-fé, dignidade e o direito do credor.

segunda-feira, 9 de junho de 2025
Atualizado em 6 de junho de 2025 12:52

Em estudos sobre direito creditório e execução patrimonial, é comum observar que, em diversas ocasiões, o credor, ao conduzir diligências de busca patrimonial em nome do devedor, depara-se com a alienação de bens imóveis a terceiros, configurando uma potencial blindagem patrimonial. Nesses cenários, a legislação oferece mecanismos para salvaguardar os direitos do credor.

Para mitigar os efeitos de tais atos, o ordenamento jurídico prevê duas principais abordagens: a anulação do ato ou a declaração de sua ineficácia. A anulação, aplicável aos casos de fraude contra credores, encontra amparo nos arts. 158 e seguintes do CC. Alternativamente, a ineficácia do ato pode ser declarada na hipótese de fraude à execução, cujos requisitos estão previstos no art. 792 do CPC.

Esses mecanismos, contudo, ganham relevância no âmbito das demandas judiciais, especialmente quando o credor se depara com a alegação de impenhorabilidade do bem de família, com base na lei 8.009/1990, mesmo em casos de alienação do imóvel sob evidente fraude. Nesse cenário, surge um questionamento crucial sobre a extensão dessa proteção: um devedor que procede à alienação de seu imóvel residencial após a constituição de um crédito ou a ciência de uma execução em curso ainda faria jus à salvaguarda do bem de família?

Essa questão revela um complexo embate jurídico, dada a colisão de direitos igualmente assegurados pelo ordenamento jurídico pátrio: de um lado, o direito do credor à satisfação de seu crédito (a título de exemplo: arts. 5.º, inciso XXXV, e 170, da CF/88 e arts. 789 e 824 do CPC) e, de outro, o direito fundamental à dignidade do devedor, que abrange a proteção de sua moradia (a título de exemplo: art. 6.º da CF/88 e lei 8.009/1990). 

A divergência de posicionamentos no STJ sobre a proteção do bem de família em casos de fraude é notável1. Em particular, a 3ª turma da Corte tem proferido julgados que consolidam o entendimento de que a caracterização de fraude na alienação de um imóvel, quando evidenciado abuso de direito e má-fé por parte do devedor, implica o afastamento da proteção legal do bem de família. De acordo com essa linha decisória, a norma protetiva do bem de família não pode ser invocada para chancelar ou premiar condutas de devedores que atuam em desconformidade com o princípio da boa-fé objetiva2. 

Em sentido oposto, é possível identificar decisões que, embora reconhecendo a existência da alienação em contexto de dívida, afastam a caracterização da fraude. Nesses julgados, a fundamentação central reside no fato de que a destinação final do imóvel não foi alterada por sua alienação, ou seja, o bem permaneceu com sua função social de moradia. Segundo esse modo de pensar, a mera transferência do domínio não desvirtua o caráter protetivo do bem de família se a alienação não resultou na perda da destinação residencial3.

Apesar das divergências no debate jurisprudencial, é crucial que a aplicação da norma vá além de sua mera literalidade. A análise deve ser sempre guiada por uma interpretação teleológica, buscando a real intenção das partes envolvidas no negócio jurídico4.

Diante disso, a boa-fé dos envolvidos deve ser um critério basilar na avaliação da incidência ou não da proteção legal conferida ao bem de família. A ausência de boa-fé pode ser evidenciada por um conjunto de indícios robustos que, quando analisados em conjunto, configuram um quadro de deslealdade e fraude.

Um dos principais indicadores da má-fé reside na data da transferência do patrimônio. Se a alienação do bem de família ocorre em período anterior à exigibilidade das obrigações, mas em um contexto de iminente ou previsível insolvência, tal fato levanta sérias suspeitas sobre a finalidade da operação. A transferência de bens em um momento estratégico, com o nítido propósito de blindar o patrimônio contra futuras execuções, macula o ato com o vício da fraude.

Ademais, a identidade do adquirente do bem é um fator determinante para aferir a má-fé. A transferência de patrimônio para familiares próximos (cônjuge, filhos, pais, etc.) ou para holdings patrimoniais recém-constituídas5, especialmente em um cenário de endividamento do devedor, permite a presunção de ciência por parte do adquirente quanto ao estado de insolvência do alienante. Nesses cenários, a operação se afasta do caráter de mera transação comercial e se aproxima da figura da simulação ou da fraude.

Outro elemento crucial que corrobora com a má-fé do terceiro adquirente e a intenção fraudulenta na alienação do bem é a inexistência ou a irrisoriedade da contraprestação. Em diversas situações, a transação ocorre sem qualquer pagamento efetivo ou mediante a estipulação de um valor significativamente inferior ao de mercado do imóvel, sobre o qual se busca a proteção do bem de família. Essa discrepância serve como um forte indicativo de que a transferência patrimonial não teve por escopo um legítimo negócio jurídico. Pelo contrário, sugere que a operação foi articulada com o objetivo de subtrair o bem da esfera de responsabilidade patrimonial do devedor, em detrimento dos credores. 

Diante desse panorama, torna-se imperativo que, ao analisar o caso concreto, o julgador considere os princípios da boa-fé objetiva e da lealdade. Esses princípios são cruciais para discernir a legitimidade da conduta das partes e, consequentemente, para conferir ou não a proteção ao bem de família. A tutela do bem de família, embora essencial para a concretização do direito fundamental à moradia e à dignidade da pessoa humana, não pode e não deve servir como um escudo para condutas fraudulentas.

Permitir que a proteção do bem de família seja utilizada para blindar patrimônios em operações desprovidas de boa-fé desvirtuaria sua finalidade precípua. Em última análise, essa permissividade comprometeria a segurança jurídica, a efetividade das decisões judiciais e a própria integridade do sistema de execução. A interpretação da lei 8.009/90 deve sempre coadunar-se com o princípio da boa-fé, evitando que a norma de proteção se converta em ferramenta para a consumação de ilícitos.

______________

1 LOPES, João. Fraude à execução e a proteção do bem de família: limite, salvaguarda e abuso de direito. ConJur, 27 fev. 2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-fev-27-fraude-a-execucao-e-a-protecao-do-bem-de-familia-limite-salvaguarda-e-abuso-de-direito/. Acesso em: 26 maio 2025.

2 A título de exemplo: (i) STJ; AgInt nos EDcl no REsp n. 1.924.277/DF; Órgão Julgador: Terceira Turma; Relator Ministro Moura Ribeiro; Data do Julgamento: 17/2/2025; (ii) STJ; AgInt no AREsp n. 2030295/SP; Órgão Julgador: Terceira Turma; Relatora: Ministra Nancy Andrighi; Data de Julgamento: 17/04/2023; e (iii) STJ; AgInt no REsp n. 1.949.053/TO; Órgão Julgador: Terceira Turma; Relator Ministro Humberto Martins; Data do Julgamento: 25/09/2023.

3 A título de exemplo: (i) STJ; AREsp n. 2.851.507/SP; Órgão Julgador: Quarta Turma; Relator: Ministro Raul Araújo; Data do Julgamento: 31/03/2025; (ii) STJ; EDcl no AgRg no AREsp n. 125.537/RS; Órgão Julgador: Quarta Turma; Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti; Data do Julgamento: 24/06/2024; (iii) STJ; AgInt no AREsp n. 2.245.731/SP; Órgão Julgador: Terceira Turma; Relator Ministro Humberto Martins; Data do Julgamento: 18/12/2023.

4 MEDINA, José Miguel Garcia. Código de Processo Civil Comentado. 8. ed. rev., atual e ampl. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. pg. 970/974.

5 VASCONCELOS, Rita. A (im)penhorabilidade do bem de família integralizado a uma holding. Revista Jurídica Gralha Azul, Curitiba, v. 1, n. 25, 28 jan. 2025. Disponível em: https://revista.tjpr.jus.br/gralhaazul/article/view/129. Acesso em: 26 maio 2025.

Fernanda Rodrigues Endrissi
Pós-graduada em Direito Empresarial Aplicado à Era Digital pela Universidade Estadual de Londrina. Pós-graduada em Direito Civil pela Universidade Estadual de Maringá. Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Advogada do escritório Medina Guimarães Advogados.

Fonte: Migalhas

                                                                                                                            

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