Afinal, é namoro ou união estável?

Afinal, é namoro ou união estável?

Rachel Leticia Curcio Ximenes e Gustavo Magalhães Cazuze

A linha entre namoro e união estável é tênue. O contrato de namoro ajuda a definir limites e evitar implicações legais indesejadas na relação.

quinta-feira, 12 de junho de 2025
Atualizado em 11 de junho de 2025 14:05

"É namoro ou amizade?" Quem nunca ouviu essa pergunta ao apresentar alguém aos seus amigos e familiares. A sociedade, desde sempre, busca rotular as relações para encaixá-las em conceitos já existentes. Mas será que esses rótulos realmente refletem a realidade do vínculo vivido?

É fato que o ser humano, como bem definiu Aristóteles, é um animal social - e, ao longo da vida, constrói laços afetivos dos mais variados tipos. A maneira que as pessoas se relacionam evoluiu e, consequentemente, a forma como essas conexões se estabelecem também mudou. Flach e Deslandes (2021, p. 5,034)1 destacam que as "práticas amorosas têm se transformado ao longo da história e o próprio significado do que seja "amor" não é um conceito unívoco". Exemplo disso é o próprio instituto do casamento, que antes tinha um caráter unicamente financeiro e que após passar por mudanças profundas, chegou aos moldes que hoje conhecemos.

Essas mudanças demandaram uma longa jornada, saindo da instituição do casamento como transação econômica - em que os filhos eram unidos pelos interesses patrimoniais - até a concepção que temos hoje, tendo como base os laços afetivos. O que antes tinha caráter unicamente monetário, deu lugar às relações baseadas na afetividade, com vínculos recíprocos. Essa evolução decorre do reconhecimento de que o afeto é elemento fundamental para a constituição das relações familiares. Sobre o tema, o Dr. Silvio Venosa (2017, p.8)2 nos explica que:

O afeto, com ou sem vínculos biológicos, deve ser sempre o prisma mais amplo da família, longe da velha asfixia do sistema patriarcal do passado, sempre em prol da dignidade humana. Sabido é que os sistemas legais do passado não tinham compromisso com o afeto e com a felicidade.

Se o afeto é hoje o centro das relações familiares, era esperado que o Direito passasse a reconhecer os vínculos que são pautados na estabilidade e reciprocidade, de modo a abarcar as novas camadas as quais somos apresentados diariamente. Vírgilio de Sá Pereira já lecionava, em 1959 (p. 90)3, que a família não tem sua criação legitimada pelo legislador, mas sim pela sua natureza. In verbis:

Agora, dizei-me: que é que vedes quando vedes um homem e uma mulher, reunidos sob o mesmo teto, em torno de um pequeno ser, que é o fruto do seu amor? Vereis uma família. Passou por lá o juiz, com a sua lei, ou o padre, com o seu sacramento? Que importa isso: o acidente convencional não tem força para apagar o fato natural.

Hoje, o direito prioriza a realidade dos fatos e é justamente nesse contexto que encontramos a união estável. O instituto passou por profundas transformações no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente após a Constituição Federal de 1988, que a reconheceu como entidade familiar. O art. 226, §3º, da Carta Magna, estabeleceu que "para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Esse foi início de uma série de avanços legislativos e jurisprudenciais que consolidaram a união estável como um instituto jurídico pleno, com direitos e deveres equivalentes ao casamento. Podemos citar, por exemplo, a lei 8.971/1994 - que trata sobre alimentos, sucessão e o reconhecimento da união estável quando da existência da prole.

O Código Civil brasileiro foi o grande responsável por trazer, de forma clara e objetiva, o que as leis esparsas tratavam acerca dos requisitos de caracterização de reconhecimento de uma união estável. Trata, a norma, em seu art. 1.723, que "é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família". Coadunando com o quanto tratado pelo CC, leciona a doutrinadora Maria Helena Diniz4, em complemento, que é necessária:

[...] convivência pública, contínua e duradoura de um homem com uma mulher, vivendo ou não sob o mesmo teto, sem vínculo matrimonial, estabelecida com o objetivo de constituir família, desde que tenha condições de ser convertida em casamento, por não haver impedimento legal para sua convolação. (DINIZ, 2008, p. 368)

O direito sempre acompanha as mudanças sociais. Em 2011, o STF, no julgamento da ADPF 132 e ADI 4.277, reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar, garantindo os mesmos direitos das uniões estáveis heteroafetivas. Essa decisão teve como fundamento os princípios da dignidade humana e igualdade, assegurando proteção a todas as formas de constituição familiar.

A união estável, portanto, caracteriza-se por meio de convivência pública, contínua e duradoura que podem ou não viver em um mesmo teto. Voltamos, então, à pergunta inicial: "É namoro ou união estável?". Quando saber quando a relação é somente um namoro e quando já pode ser configurada como uma união estável?

A fim de elucidar as principais diferenças, Maria Helena Diniz, em seu curso de Direito Civil Brasil, nos explica que a na união estável já se há uma entidade familiar, enquanto no namoro há a intenção de se formar uma família. Para tanto, trazemos o que nos ensina Xavier (2020, p. 93)5, que leciona:

É pacífico o entendimento de que o namoro puro e simples não traz consequências jurídicas diversas daquelas que, direta ou indiretamente, aplicam-se à fase do "ficar". Em outras palavras, um mero namoro não é, por si só, um fato tutelado pelo direito, assim como ocorre com outras espécies de interação conjugal consideradas fugazes. No entanto, são de particular complexidade as situações em que estão em pauta namoros que configuram convivência pública, contínua e duradoura entre as partes. O relacionamento, então, deixa de ser frágil e passa a refletir para a sociedade ares de família.

Temos, pois, que o namoro pode ser entendido como a afetividade estabelecida entre duas pessoas, com o objetivo principal de compartilhar conquistas diárias, mas, com um grau de comprometimento menor que o do matrimônio. Um fato predominante que diferencia a união estável de namoro é o nível de comprometimento da união, que acarreta em obrigações que envolvam a vida a ponto de fundir patrimônios. E é exatamente neste ponto que se insere o contrato de namoro. Para o Dr. Rodrigo da Cunha Pereira6, há uma clara diferenciação entre o namoro e a união estável. Isso porque:

Namoro é o relacionamento entre duas pessoas sem caracterizar uma entidade familiar. Pode ser a preparação para a constituição de uma família futura, enquanto na união estável, a família já existe. Assim, o que distingue esses dois institutos é o animus família e, reconhecido pelas partes e pela sociedade (trato e fama).

Existem namoros longos que nunca se transformaram em entidade familiar e relacionamentos curtos que logo se caracterizam como união estável. O mesmo se diga com relação à presença de filhos, que pode se dar tanto no namoro quanto na união estável.

De modo a se evitar essa confusão quanto a caracterização ou não de uma união estável no bojo da relação de namoro, surge a figura do contrato de namoro, que visa dar forma à vontade real das partes, afastando implicações jurídicas adversas. De acordo com os ensinamentos de Marília Pedroso Xavier (2022)7:

O contrato de namoro emerge como importante instrumento para externar de forma segura a vontade das partes no sentido de evitar que ocorram efeitos jurídicos indesejados. Esses efeitos, advindos de um enquadramento equivocado como união estável, podem se dar em vida, mas também causa mortis. É nesse sentido que o contrato de namoro passa a ser um importante instrumento de planejamento sucessório. Cabe refletir sobre o tema sob o prisma da recente pandemia da Covid-19, que alterou radicalmente a vida em todo o mundo e trouxe significativos impactos para a vida em sociedade. Para além da notória crise experimentada no campo da saúde pública, é fato que o impacto na economia também foi brutal. Tudo isso redundou em significativas mudanças no campo do comportamento social, no estabelecimento de novas rotinas e, em última análise, no repensar de algumas dinâmicas familiares. Nesse sentido, muitos casais de namorados passaram a residir em conjunto com o objetivo de poder exercer uma vida afetiva e sexual, sem serem afetados pela imposição de isolamento social e, em alguns casos, como forma de gerar economia. Essa coabitação por si só não pode ser entendida como elemento caracterizador de união estável. [...] o que deve nortear o enquadramento jurídico é a (in)existência do objetivo das partes de construir família. A fragilidade da vida no momento pandêmico só reforça a importância do contrato de namoro. A nota característica do contrato de namoro é, justamente, ser um negócio jurídico declarativo. Um negócio jurídico próprio e independente do negócio jurídico união estável que se declara inexistente, justamente por não existir uma união estável nem a intenção de a construir. [...] O contrato de namoro é um negócio jurídico bilateral, tendo eficácia recíproca entre os sujeitos. Ambos os envolvidos declaram, por si, a inexistência do objetivo de construir família, vinculando-se a tal declaração para todos os fins de direito.

Com as mudanças sociais já abordadas, houve alterações nos conceitos de família e relacionamento, o que fez com que a legislação e o direito brasileiro se adaptassem de maneira rápida, para acompanhar as dinâmicas atuais. O período pandêmico foi fator primordial no que diz respeito a transformação da forma como a sociedade se relaciona. Muitos foram os casais que, frente às restrições sanitárias, optaram por morar juntos para enfrentar as dificuldades impostas e reduzir consideravelmente os custos de vida. No entanto, esse movimento não configurava, por si só, uma união estável. Nesse ínterim, o contrato de namoro consolidou-se como um mecanismo de prudência para os interessados, deixando a relação mais clara quanto ao seu desenvolvimento e não restando dúvidas de qual a real intenção por detrás daquela união - pelo menos naquele momento (Silva, 2019)8.

Ademais, enquanto a união estável é caracterizada pela "convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida visando constituir família", o namoro pode assemelhar-se a ela no que diz respeito à convivência, mas distancia-se quanto à finalidade de formação familiar. O contrato de namoro surge justamente para delimitar essas diferenças, deixando claro que o relacionamento estabelecido é um relacionamento amoroso, não havendo maiores implicações que possam recair sobre ele.

Além disso, o documento serve para estabelecer regras específicas para a relação, tais como a divisão de bens adquiridos em conjunto, a guarda de animais de estimação e a exclusão de direitos sucessórios. Cumpre ressaltar que é indicado que todo o processo seja acompanhado por um advogado especializado, a fim assegurar a sua validade jurídica e atingir os objetivos almejados, com a devida assistência jurídica para os casos concretos.

Em 2023, o CNB - Colégio Notarial do Brasil disponibilizou dados demonstrando um aumento de 35% nos registros de contratos de namoro em relação ao ano de 20229. A ampliação dos registros demonstra a preocupação dos casais em estabelecer que as relações não possuem implicações patrimoniais e, consequentemente, não são reconhecidas como uniões estáveis. O contrato é uma prova robusta das partes em possíveis questões judiciais. Temos, como exemplo, decisão da 11ª câmara Cível do TJ/SP, que negou a caracterização de união estável pela existência de contrato de namoro. No acórdão da apelação cível 0002492-04.2019.8.16.018710, o relator entendeu que a "relação das partes não se configurou integralmente em união estável, pela ausência dos requisitos legais, prevalecendo o contrato firmado entre as partes."

Em uma sociedade em constante transformações, os vínculos afetivos passam por mudanças evolutivas significativas, o que faz com que o Direito brasileiro crie, cada vez mais, mecanismos capazes de trazer respostas rápidas e eficazes à sociedade. E, justamente nesse cenário de mudanças, temos o contrato de namoro, instrumento válido que registra as vontades das partes, trazendo segurança jurídica e clareza ao quanto pretendido. A diferença real entre namoro e união estável vai, como elucidado, muito além do tempo de convívio ou da divisão do mesmo tempo. O ponto crucial é a intenção de constituição familiar. Assim, para responder à questão título do presente trabalho "é namoro ou união estável?" é preciso uma análise do quanto pretendido pelo casal e da transparência da relação. Até porque, como diz o ditado, é melhor prevenir - e registrar - do que remediar.

_______

1 BAUMAN Z. Amor líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. In: FLACH, R.M.D; DESLANDES, S.F. Regras/rupturas do "contrato" amoroso entre adolescentes: o papel do abuso digital. Ciência & Saúde Coletiva, 26(Supl. 3):5033-5044, 2021.

2 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. v.5. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2017.

3 PEREIRA, Virgílio de Sá. Direito de família. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959

4 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011

5 XAVIER, Marília Pedroso. Contrato de Namoro: amor líquido e direito de família mínimo. 2º ed. Belo Horizonte: Fórum 2020.

6 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias/ Rodrigo da Cunha Pereira; prefácio Edson Fachin. -2. ed. -Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 235.

7 XAVIER, Marília Pedroso. Contrato de Namoro - Amor líquido e Direito de Família Mínimo. 3ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022. p. 38-177.

8 SILVA, Leonardo Amaral Pinheiro. Qual a eficácia dos contratos de namoro? Revista IBDFAM Famílias e Sucessões, v. 36, Belo Horizonte, 2019

9 https://cnbsp.org.br/2024/06/11/artigo-contratos-de-namoro-batem-recorde-no-brasil-para-evitar-reconhecimento-de-uniao-estavel-por-monica-bergamo/ .

10 https://www.tjpr.jus.br/noticias/-/asset_publisher/9jZB/content/decisao-do-tjpr-nega-uniao-estavel-por-causa-de-contrato-de-namoro/18319 .

Rachel Leticia Curcio Ximenes
Sócia do CM Advogados, mestra e doutora em Direito Constitucional pela PUC-SP, especialista em Direito Notarial e Registral pela Escola Paulista da Magistratura (EPM) e em Proteção de Dados e Privacidade pelo Insper, e presidente da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB-SP.

Fonte: Migalhas

Realize o registro pela internet através dos canais eletrônicos do CARTÓRIO MASSOTE BETIM:

Notícias

Interdição só é válida se for registrada em cartório, diz juíza

FORA DA REGRA Interdição só é válida se for registrada em cartório, diz juíza Martina Colafemina 12 de junho de 2025, 8h16 Em sua análise, a juíza deu exemplos de artigos que dizem que é nulo qualquer contrato celebrado por uma pessoa absolutamente incapaz. Entretanto, ela analisou que a validade...

Nova procuração maioridade: Uma exigência prescindível?

Nova procuração maioridade: Uma exigência prescindível? Marcelo Alves Neves A exigência de nova procuração com a maioridade é prescindível. Veja o que a doutrina diz sobre a validade do mandato e saiba como proceder. segunda-feira, 9 de junho de 2025 Atualizado às 15:07 De fato, a exigência de uma...

Como fica a divisão de bens no divórcio? Entenda de vez

Como fica a divisão de bens no divórcio? Entenda de vez Alessandro Junqueira de Souza Peixoto Vai se divorciar e não sabe como dividir os bens? Entenda como o regime de bens escolhido impacta diretamente na partilha e evite surpresas no momento mais delicado da separação. quarta-feira, 4 de junho...

Advogada esclarece o que ocorre com dados digitais após falecimento

Herança digital Advogada esclarece o que ocorre com dados digitais após falecimento Com a ausência de uma legislação específica, cresce a necessidade de planejamento sucessório para ativos digitais como contas online, criptomoedas e arquivos pessoais. Da Redação terça-feira, 3 de junho de...