Convivência mista na dissolução da união familiar

Convivência mista na dissolução da união familiar

Júlio César Ballerini Silva

Uma análise sobre o limite do que entra ou não em reconhecimento da formação de patrimônio comum em relacionamentos afetivos.

segunda-feira, 15 de setembro de 2025
Atualizado às 14:44

Apesar de mudanças estruturais nas famílias brasileiras em que diminui o número de noivados e cresce o número de uniões familiares informais. Dúvida comum seria o que fazer quando um casal viveu em união estável e resolve depois de algum tempo, se casar ou surgem indagações sobre se tempo de namoro ou noivado teria alguma relevância sobretudo quando o casal se une em momento posterior e vem a se separar.

Geralmente, como diz o ditado popular "quando a esmola é muita, o santo desconfia (ou o mote "não existe almoço grátis" do ganhador do Prêmio Nobel Milton Friedman) assim, pela prática, quando um casal está junto muito tempo e resolve se casar com separação de bens, desconfie se tais convites partem do outro (há grande número de processos em que se discute se outro já preparava bases para uma fraude ao regime de bens - como ato de violência de gênero - modalidade de violência psicológica, emocional e patrimonial - se tal situação partiu do homem ou de quem fizer as vezes do gênero masculino).

O mesmo vale, mutatis mutandi, para o caso de um casal começar a investir em formação de um patrimônio comum, antes da intenção de publicamente formarem família ou darem início a um matrimônio.

Muitos de meus alunos já ouviram minha expressão no sentido de que o mundo seria um lugar perigoso para se viver e isso se lança diante do enorme risco de judicialização de tudo na sociedade moderna - o risco de alguém ser processado é enorme. Brinco muito em minhas aulas que a balada do futuro o casal deve ir para a noite, com advogado e tabelião.

Por conta do entendimento de que o núcleo de afeto permite o reconhecimento de uma união familiar, pessoas tem, de modo cada vez mais frequente entabulado contratos de namoro, de namoro qualificado e de união estável - para tentarem conferir maior segurança jurídica em suas relações patrimoniais (e se tem como muito adequado que isso se faça - ninguém sabe quando irá falecer, quem falecerá primeiro, e por aí vai).

Como o Brasil é um celeiro de operadores do Direito, com grande número de faculdades, lançando muitos profissionais no mercado, semestre a semestre, a potencialidade do aumento de número de demandas acompanha este ritmo, eis que a possibilidade do cidadão comum conhecer alguém com formação jurídica e saber da potencialidade de demandar é muito grande, o que talvez explique o dado da pesquisa do CNJ do ano passado, dando conta de um novo processo a cada cinco segundos no país.

Nesse contexto, se faz excepcionalmente necessário, o conhecimento da técnica material e processual, eis que, pequenas atitudes ou comportamentos podem alterar substancialmente o alcance das consequências de uma dada relação jurídica, não saber de detalhes pode ser curial para ser lançado em demandas ruinosas.

Há vários tipos de família reconhecidos no Direito brasileiro, desde há muito que não nos atemos apenas e tão somente aos modelos de família formal e matrimonial (opção lícita e legítima para aqueles que tenham um viés mais conservador e, sobretudo, as pessoas afeitas ao cumprimento de regras religiosas sendo que se sabe que o Estado seja laico, mas simplesmente não se pode negar a validade de regras que prestigiem o fenômeno cultural religião - a própria Constituição prestigia o direito de liberdade religiosa, diga-se de passagem).

Pelo óbvio que a família matrimonial pode ser uma opção também para os não conservadores ou mesmo para ateus, é uma questão de opção, simplesmente. Mas, a par da existência de famílias formais (com a ideia de um vínculo matrimonial e formação de uma sociedade conjugal com seus direitos e deveres - e como essa se institui de modo formal e solene a segurança jurídica acaba sendo um pouco maior), o direito tutela, na mesma medida, a família informal.

Numa visão da formulação técnica do conceito de união estável, o que se observava seria o fenômeno de se separar a união estável da relação de concubinato, pelo simples fato de que, na primeira, não haveria impedimento para o casamento, situação evidenciada no segundo caso - o que, muito provavelmente poderá vir a ser impacto com conceitos do projeto do CC que se orientam na ideia de busca pela felicidade com suas sunset clauses (cláusulas do pôr do sol comuns no Direito norte-americano).

Não obstante o STJ por conta de impactos previdenciários não venha admitindo a família paralela (vários núcleos familiares com um elemento em comum), que não se confunde com a poliafetividade (um núcleo só com três ou mais parceiros) - a questão da sunset clauses provavelmente pode vir a impactar a situação do chamado concubinato (até mesmo nas soluções até então empregadas nas famílias paralelas).

Vem daí a ideia de que a concubina, conceito a que se agregou carga ideológica negativa, seria a "amante" (ou o concubino seria o "amante"), eis que como estaria se relacionando com pessoa já casada, havendo impedimento para que se casasse, a união havida entre eles não seria passível de tutela para o direito, eis que haveria uma ideia de família monogâmica (a previsão do art. 226 CF com referência à união de um homem com uma mulher).

Quando não havia impedimento para o casamento, por exemplo, duas pessoas solteiras, que poderiam se casar, se o quisessem, não haveria uma mácula ao conceito de família informal, vindo, daí, a ideia de ser possível uma união estável, diversa da situação de um concubinato.

No entanto, nem tudo é tão simples assim, eis que a legislação civil estabelece que o separado de fato (pessoa formalmente casada) poderia constituir união estável - vindo daí questionamentos no sentido de que a união estável não seria tão fácil, assim, de se separar de uma união concubinária, apenas e tão somente por conta do requisito impedimento matrimonial.

O foco deve ser colocado na função, ou não, de se constituir família - isso tornará uma pessoa formalmente casada e impedida de se casar novamente, mas separada de fato, em companheiro em união estável.

Observe-se a ênfase que se dá, no texto legal, em sua parte final no sentido de que: "é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família".

Parte-se, portanto, desse marco diferencial seria a intenção, ou não, de se constituir família (art. 1.723 CC - parte final)- se houve intenção haverá união estável, hetero ou homoafetiva.

Se não houve tal intenção, o caso poderá ser de um namoro ou de um namoro qualificado. Namoro qualificado seria a figura criada pelo STJ, por sua 4ª turma, para designar situações em que os namorados moram sob um mesmo teto, mas continuam sem a intenção de constituir família (em recurso cujo número não se informa para preservar o sigilo de Justiça . E outros Tribunais do país, com propriedade passaram a separar situações de namoro, namoro qualificado, noivado e união estável .

Nesse mesmo sentido a orientação lançada como premissa número 2, da edição 50 da ferramenta jurisprudência em teses, do STJ, dedicada à união estável:

"A coabitação não é elemento indispensável à caracterização da união estável" (precedentes citados: STJ, Ag. Rg. no AREsp 649.786/GO, Rel. ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, julgado em 4/8/2015, DJE 18/8/2015; Ag. Rg. no AREsp 223.319/RS, Rel. ministro Sidnei Beneti, 3ª Turma, julgado em 18/12/2012, DJE4/2/2013; Ag. Rg. no AREsp 59.256/SP, Rel. ministro Massami Uyeda, 3ª Turma, julgado em 18/9/2012, DJE 4/10/2012; Ag. Rg. nos EDcl. no REsp 805265/AL, Rel. ministro Vasco Della Giustina (desembargador convocado do TJ/RS), 3ª Turma, julgado em 14/9/2010, DJE 21/9/2010, REsp 1.096.324/RS, Rel. ministro Honildo Amaral de Mello Castro (desembargador convocado do TJ/AP), 4ª Turma, julgado em 2/3/2010, DJE 10/5/2010, e REsp 275.839/SP, Rel. ministro Ari Pargendler, Rel. p/ Acórdão ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 2/10/2008, DJE 23/10/2008).

De fato, morar ou não, debaixo de um mesmo teto, inclusive, não seria elemento necessário nem mesmo para uma família formal, matrimonial, mais tradicionalista e conservadora (são muitos casais, por exemplo, que trabalham em cidades distintas e se encontram apenas em finais de semana e feriados). Não faria sentido exigir isso em uma união que, por definição, seria considerada família informal. Essas pequenas questões geram muitas dúvidas nos estudantes e concurseiros de um modo geral.

Portanto, fique atento, não basta morar sob um mesmo teto para que se presuma a intenção de constituir família e haver união estável. Isso explica o número cada vez maior de contratos de namoro para evitar disputas sobretudo patrimoniais em caso de fim de relacionamento.

Isso porque, em se cuidando de pessoas maiores e capazes, dispondo sobre direitos patrimoniais, o que for ajustado em relação ao patrimônio prevalecerá, independentemente de ter havido, ou não, concurso para a construção de algum bem, em situação reiterada pela jurisprudência do mesmo STJ neste ano.

De todo modo, com relação a direitos existenciais, por exemplo, direito de obter pensão alimentícia (direito de personalidade de integridade física, na tradicional classificação de Rubens Limongi França), o acordo não produzirá efeito, eis que aí há limites de ordem pública que não são aptos a atingirem os direitos patrimoniais, sobre os quais, reitere-se, a disposição será livre.

Dito isso, ou seja, estabelecidas tais premissas, se poderia aduzir que, uma vez que ambos resolvam constituir família, seja de modo formal, seja informal, se iniciará a formação de um patrimônio comum, diferente do patrimônio do casal antes de se unir, o que sequer as linhas da ideia de que nesse momento surjam os regimes de bens.

Os arts. 1.658, 1.659 e 1.660 do CC descrevem os bens sujeitos à partilha na comunhão parcial. Segundo o CC, quando aplicável o regime da comunhão parcial, comunicam-se todos os bens que sobrevierem ao casal, na constância da união (art. 1.658), excetuando-se, porém, os bens que cada cônjuge possuir ao se casar e os adquiridos individualmente - por exemplo, mediante doação (art. 1.659).

Já o art. 1.660 estabelece que entram na comunhão os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges, e também os que forem adquiridos por fato eventual, com ou sem o concurso de trabalho ou despesa anterior.

Assim, malgrado ambos possam escolher, no silêncio do casal, a lei escolhe por eles, um regime padrão de comunhão parcial de bens. O que cada qual possuía antes do início do relacionamento será patrimônio de cada qual, mas o que constituírem estando juntos, é considerado como patrimônio aquesto (e será dividido em caso de ruptura do relacionamento).

Do mesmo modo, como se tem pontuado desde o início do texto, se tem a ideia de acordo com a qual, geralmente, quando num casal um dos conviventes queira converter uma união estável em casamento há que se tomar cautelas para aferir o que estaria por trás do ato, e a proposta do regime de bens dirá muito sobre a intenção.

Tanto pode ser o caso de reconhecimento de uma postura legítima de busca pelos efeitos sociais de um casamento, como poderá haver indícios de uma fraude em curso - e haverá necessidade de aferir a extensão das provas em torno de tal intenção.

Goldschmidt ao comentar o ZPO apontava que processo seria um evento analógico a uma guerra, a qual se vence com armas e estratégias em analogia a ônus e provas - eu como bom mineiro, adaptei - quem prova mais, chora menos.

Se não havia fraude isso caracteriza convivência mista, o que autoriza cumulação de pedidos ao tempo do divórcio - ou seja, ação de reconhecimento e dissolução de união estável cumulada com divórcio do mesmo casal (há conexão entre causas de pedir e comunhão de fatos e direitos ambas embora tenham regimes distintos, compartilham nesse caso pontos de evidente convergência, especialmente para partilha de bens).

Tribunais tem consolidado que há conexão entre demandas desta natureza (se algum juiz não admitir a conexão basta propor as demandas em dependência).

Isso atende a princípios como da autonomia da vontade: A dissolução da união estável pode ocorrer de forma extrajudicial ou judicial, semelhante ao divórcio, respeitada a manifestação de vontade das partes.

E mesmo que se busque um divórcio extrajudicial dentro do espaço de transigibilidade - art. 840 CC - não haveria impedimento para uma escritura una - o que evita e previne comportamentos contraditórios, quebra da segurança jurídica dentro da ideia de harmonia - sendo medida socialmente recomendável - o que se deve demonstrar, em casos como este é que uma ação una resolveria o problema de modo estável e indiscutível - o que colabora para a ideia de tempestividade (menor número de demandas, de atos processuais, uma única coleta de provas etc.).

A jurisprudência enfatiza a necessidade de garantir proteção a ambos os conviventes. A ministra Nancy Andrighi assevera que processos e relações jurídicas que se alonguem no tempo - sem observância de tempo razoável - geram ansiedade comprometendo direitos humanos fundamentais - de fato - relações que se alongam de modo indefinido no tempo geram sofrimento indevido por falha do Estado (que demora e ou não coíbe, de modo eficaz, a ação da parte contrária - e, ainda mais, não previne - o processamento conjunto de ambos os pedidos em uma mesma demanda resta como benfazejo num caso como este). Sobre o tema destaco: STJ - REsp 1.348.536/SP.

Em tal situação o STJ reconheceu que, havendo período de convivência em união estável seguido de casamento, a partilha de bens deve considerar ambos os períodos, respeitando o regime adotado no casamento e aplicando-se a comunhão parcial de bens ao período de união estável.

Problemas existem, no entanto, quando se tenha que ir a um tempo anterior a este. Ou seja, em situações em que o casal ainda namorava (ou noivava, pois ainda existem famílias com esse viés mais apegado ao sentimento religioso de um noivado) ao tempo em que se deliberou buscar investir na formação de um patrimônio comum (sempre se lembrando, como apontado acima, que namoro ou noivado não se confundem com união estável).

Por exemplo, se tem casos em que namorados ou noivos se ajudem para a aquisição de um carro, que será colocado em nome de um deles, para que, posteriormente, vão juntando mais dinheiro, trocando-o por um imóvel e assim se prossiga. Tanto como magistrado antes de me aposentar, quanto como advogado com escritório, tenho visto, com certa constância, situações como esta.

Nesses casos, não há que se falar em partilha, pois ainda não havia um regime de bens ativo, na acepção formal que se dá a este conceito. Mas aqui é inegável que se tenha um negócio jurídico prévio, um acordo de vontades para a formação de uma sociedade de fato, no mínimo.

Ou seja, havendo prova do concurso de esforços (utilização de fundos de ambos para a formação de um patrimônio em comum), não se poderá admitir situações de enriquecimento sem causa, enquanto medida proibida pelo advento da norma contida no art. 884 CC.

Nesses casos, a depender do que se conseguir comprovar, poderá haver partilha também nesse caso, com divisão do que cada qual investiu para a formação de tal patrimônio, até como medida de equidade, e de ultima ratio de justiça.

Júlio César Ballerini Silva
Advogado. Magistrado aposentado. Professor. Coordenador nacional do curso de pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil e em Direito Médico.

Fonte: Migalhas

______________________________________________

 

                                                                                                                       

                 

Notícias

Decisão do STJ convida a repensar transmissão de bens digitais no Brasil

Uma vida na nuvem Decisão do STJ convida a repensar transmissão de bens digitais no Brasil Danilo Vital 15 de setembro de 2025, 8h48 “Enquanto isso, a jurisprudência decide caso a caso, o que gera decisões díspares e falta de previsibilidade. A decisão do STJ é inovadora, mas não resolve essa...

Presunção de paternidade decorrente da recusa de exame de DNA

Processo Familiar Presunção de paternidade decorrente da recusa de exame de DNA Carlos Eduardo Pianovski 7 de setembro de 2025, 8h00 O sistema vigente mantém a dualidade entre filhos matrimoniais e extramatrimoniais, em resquício da odiosa distinção pretérita entre filhos legítimos e...