Da carta de sentença extrajudicial
Da carta de sentença extrajudicial
Fernanda de Freitas Leitão
A sobrecarga do Judiciário impulsiona a desjudicialização, com delegação de atos processuais a cartórios, promovendo celeridade, economia e segurança jurídica.
terça-feira, 15 de julho de 2025 - Atualizado em 14 de julho de 2025 12:27
O Poder Judiciário brasileiro enfrenta atualmente severa sobrecarga decorrente do elevado número de processos em tramitação - mais de 35,2 milhões somente em 2024 -, fenômeno que se intensificou em razão da ampliação de direitos fundamentais a partir da Constituição de 1988 e do crescimento populacional. Paralelamente, o número de magistrados permanece limitado: estima-se que existam 18.911 juízes em atuação no país, o que representa, em média, uma carga de 1.850 processos por magistrado. Esse descompasso estrutural compromete a efetividade da jurisdição, sobretudo diante do mandamento constitucional que prevê o amplo acesso à Justiça (art. 5º, inciso XXXV, da Constituição da República).
Essa crise de funcionalidade jurisdicional é analisada por Norberto Bobbio em sua obra "A Era dos Direitos", na qual o autor denuncia a contradição entre a multiplicação geométrica dos direitos e o crescimento aritmético dos meios institucionais de proteção - especialmente do número de juízes. Esse desajuste resulta em uma equação perversa, que compromete a efetividade da jurisdição e inviabiliza uma prestação jurisdicional célere e adequada. Trata-se de um desafio de escala global, cujos sintomas mais recorrentes são a morosidade processual, os altos custos e a imprevisibilidade das decisões judiciais.
Com o objetivo de conferir maior eficiência, acessibilidade e transparência ao Poder Judiciário e com vistas a solucionar ou ao menos minimizar essa crise do Poder Judiciário, foi promulgada a EC 45/04, amplamente conhecida como Reforma do Judiciário. Dentre as inovações introduzidas, destacam-se: (a) a criação do CNJ, incumbido do controle administrativo e financeiro do Judiciário, bem como da fiscalização do cumprimento dos deveres funcionais dos magistrados; (b) o fortalecimento da garantia de acesso à Justiça, com a incorporação, no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição da República, do princípio da razoável duração do processo; (c) a possibilidade de edição de súmulas com efeito vinculante pelo STF, aplicáveis aos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública; (d) a adoção do instituto da repercussão geral, visando restringir o cabimento de recursos extraordinários às causas que versem sobre questões constitucionais relevantes; e (e) o aprimoramento dos mecanismos de combate à morosidade processual, por meio do incentivo à conciliação e à mediação como formas de solução consensual de conflitos.
Cumpre igualmente ressaltar que tanto o legislador quanto o próprio Poder Judiciário vêm envidando esforços na busca por alternativas que assegurem a efetivação de direitos aos cidadãos, ao mesmo tempo em que visam reduzir o número de demandas desnecessárias submetidas à apreciação judicial.
Dentre essas alternativas, destaca-se a desjudicialização ou compartilhamento da Justiça, como um importante instrumento capaz de proporcionar a redução do volume processual e garantir a simplificação e agilidade aos processos originalmente judiciais.
Com efeito, a desjudicialização ou compartilhamento da Justiça indica a transferência de algumas atribuições que só poderiam ser realizadas pela Justiça, para delegatários dos serviços extrajudiciais.
Nesse movimento de transferência de competências, merece especial destaque o papel essencial dos Notários e Registradores, que vêm assumindo função cada vez mais relevante na promoção da desjudicialização. A atuação desses profissionais tem contribuído significativamente para a simplificação e celeridade na vida dos cidadãos, ao viabilizar soluções extrajudiciais seguras, céleres e eficazes, inclusive com a possibilidade de se praticar atos eletrônicos a distância, depois da publicação do provimento CNJ 100/20.
Esse protagonismo pode ser observado em diversas medidas já implementadas no Brasil, como a lavratura de escrituras públicas de inventário, divórcio e partilha, a usucapião extrajudicial, a adjudicação compulsória extrajudicial, a execução extrajudicial da hipoteca, o cancelamento extrajudicial do compromisso de compra e venda, a conta notarial, entre outras, todas voltadas à redução da sobrecarga do Judiciário e ao fortalecimento da cidadania.
Nesse sentido também foi introduzida, por meio de normas administrativas estaduais, a Carta de Sentença Extrajudicial, que é um instrumento formal utilizado para transmitir os efeitos de uma decisão judicial já transitada em julgado, formada a partir de documentos emitidos diretamente em uma serventia extrajudicial - ou seja, sem necessidade de requerer ao juízo de origem, tornando todo o processo mais eficiente e com um custo módico.
Esse novo instrumento desjudicializante foi regulamentado no estado do Rio de Janeiro, desde a publicação do provimento CGJ/RJ 42/20, que permitiu a elaboração da Carta de Sentença diretamente pelos Ofícios de Notas fluminenses. Atualmente esse provimento CGJ/RJ 42/20 foi incorporado ao provimento CGJ/RJ 87/22 (Código de Normas), nos seus arts. 513 a 516.
Importa esclarecer que a Carta de Sentença Extrajudicial não foi prevista expressamente na legislação federal, tampouco foi objeto de regulamentação por provimento do CNJ, encontrando amparo normativo apenas em determinados estados da federação que editaram regramentos específicos, por intermédio de suas Corregedorias-Gerais da Justiça.
Dentre os estados, além do Rio de Janeiro, que já regulamentaram essa matéria, pode-se destacar: Acre, Bahia, Ceará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Piauí, Rio de Janeiro, Rondônia, Santa Catarina e São Paulo.
Por essa razão, antes da lavratura da Carta de Sentença em Tabelionato de Notas, é imprescindível verificar em qual estado da federação o referido instrumento deverá produzir os seus efeitos, haja vista que, como já mencionado acima, nem todos os estados brasileiros dispõem de regulamentação própria acerca da Carta de Sentença extraída pela via extrajudicial.
Insta ainda salientar que a expressão "Carta de Sentença Extrajudicial" corresponde a uma denominação genérica e tecnicamente imprecisa, utilizada para designar o conjunto de documentos extraídos de processo judicial, mediante requerimento da parte interessada, de seu advogado ou de procurador com poderes específicos, perante o Tabelionato de Notas.
A nomenclatura atribuída ao instrumento pode variar conforme a natureza do processo originário. Assim, por exemplo, no caso de processo de inventário, será emitido o Formal de Partilha ou a Carta de Adjudicação extrajudicial; em processo de execução, será expedida a Carta de Arrematação extrajudicial; em processo de extinção de condomínio, será emitida a Carta de Adjudicação extrajudicial; no processo de divórcio, será expedida a Carta de Sentença extrajudicial, com vistas à alteração do estado civil e do nome no Registro Civil de Pessoas Naturais.
Após o requerimento da parte interessada, esses documentos serão autenticados e organizados pelo Tabelionato escolhido, formando um instrumento que poderá ser encaminhado, de forma exemplificativa, a órgão público, entidade privada, Registro Imobiliário, Registro Civil de Pessoas Naturais, com a finalidade de viabilizar a produção dos efeitos decorrentes da decisão judicial nela consubstanciada.
Dessa forma, ao término de processos judiciais, como os de divórcio, inventário ou execução, não se faz mais imprescindível aguardar a expedição da carta de sentença, do formal de partilha ou da carta de arrematação pelo Poder Judiciário - procedimento frequentemente marcado pela morosidade. A Carta de Sentença Extrajudicial, elaborada pelo Notário, goza de plena eficácia jurídica perante os órgãos públicos e entidades privadas, conferindo maior celeridade e efetividade ao cumprimento das decisões judiciais.
Em síntese, o movimento da desjudicialização ou do compartilhamento da Justiça representa um avanço expressivo na busca por um sistema de Justiça mais célere, acessível e eficiente, especialmente em um cenário marcado pela sobrecarga do Poder Judiciário. Nesse contexto, os Notários assumem papel de indiscutível relevância, atuando como agentes garantidores da segurança jurídica e da efetividade dos direitos, ao oferecerem alternativas extrajudiciais viáveis, confiáveis e amparadas pela fé pública. A ampliação das atribuições extrajudiciais, como no caso da Carta de Sentença Extrajudicial, revela não apenas a confiança do ordenamento jurídico na atividade notarial, mas também a consolidação de uma cultura voltada à pacificação social e à valorização do consenso, pilares fundamentais para o aperfeiçoamento e racionalização da administração da nossa Justiça.
Fernanda de Freitas Leitão
Tabeliã do 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro.
Fonte: Migalhas