Despejo sem juízo: Uma análise crítica da proposta legislativa
Despejo sem juízo: Uma análise crítica da proposta legislativa
Fellipe Simões Duarte
segunda-feira, 11 de agosto de 2025 Atualizado em 8 de agosto de 2025 10:35
O movimento de desjudicialização
Há uma crescente tendência, no país, de retirar demandas do poder judiciário para a esfera extrajudicial. Trata-se do fenômeno da desjudicialização ou extrajudicialização1, como preferem alguns.
De acordo com o CNJ, no ano de 2019 a duração média de processos pendentes em fase de execução no Poder Judiciário Estadual foi de, aproximadamente, 6 anos e 2 meses2. De 2019 até os dias atuais, certamente esse número vem crescendo a cada dia. Diante disso, mais que necessário o estímulo para que os procedimentos sejam cada vez mais trazidos para fora do poder judiciário.
O movimento da desjudicialização vem ganhando força no país, desde a década de 90. Como exemplo, podemos citar o reconhecimento de paternidade extrajudicial (lei 8.560/1992) e os procedimentos extrajudiciais de alienação fiduciária de bem imóvel (lei 9.514/1997).
Nos anos 2000, houve a efetiva consolidação do movimento, com destaque para a lei 11.441/07, que possibilitou a realização de inventários, partilhas, separações e divórcios pela via extrajudicial.
Nos anos 2010 até o presente, o movimento tomou mais uma crescente, com novos marcos normativos, como o CPC, a lei de mediação (lei 13.140/15), a lei 13.465/17 (que simplificou a regularização fundiária) e, mais recentemente, a lei 14.711/23, que ampliou significativamente as hipóteses de busca e apreensão extrajudicial.
O movimento de desjudicialização se insere no contexto da terceira onda de acesso à justiça, caracterizada pela busca de procedimentos mais acessíveis, simples e racionais.3
No contexto da desjudicialização, tramita na Câmara dos Deputados o PL 3999/20, de autoria do deputado Hugo Leal. A ideia do projeto é desjudicializar os despejos fundados na falta de pagamento de aluguel e seus acessórios. Trata-se de louvável inovação que, apesar de se tratar de PL, merece debate.
As motivações da criação do projeto
De acordo com o Censo de 20194, dos 72.395 domicílios analisados, 13.282 são locados. Trata-se de 18,34% da ocupação residencial do país. Diante disso, conforme trazido pela justificação do PL 3999/20, "caminhos que tornem a locação de imóveis mais competitiva, célere e viável, trarão evidentes benefícios a cada um dos atores que integram esse tipo de relação jurídica".
De fato, qualquer advogado com o mínimo de prática ou cidadão com o mínimo de vivência sabe o quão tortuoso é um processo de despejo na justiça. E no curso desse processo, muitas vezes quando não há acordo ou o deferimento de medida liminar para desocupação, a morosidade é ainda mais prejudicial.
Também é bom lembrar que, como ressalta a justificação do PL, boa parte dos locadores depende da locação de imóvel para subsistência. Razão pela qual, muitas vezes é preciso que o locador renuncie ao recebimento de considerável numerário para conseguir um acordo para uma rápida desocupação por parte do locatário.
Por outro lado, se há o inadimplemento do aluguel é notório que o contrato de locação merece ser desfeito. Esse desfazimento pode muito bem ser respaldado pelos profissionais de direito, dotados de fé pública, que são os notários.
Para o processamento do despejo, o PL respeitou ainda as competências dos titulares dos cartórios. Sendo que do procedimento participarão o tabelião de notas e o registrador de títulos e documentos, conservando sua competência para o envio de notificações extrajudiciais.
Em seguida, passa-se a tratar de alguns aspectos do procedimento.
A hipótese do despejo extrajudicial
De acordo com a lei 8.245/1991, há inúmeras razões que motivam a ação de despejo, dentre as quais a não apresentação de novo fiador em virtude da exoneração do original, a sublocação não autorizada, infração contratual, etc.
No entanto, cuidou o PL por autorizar o despejo extrajudicial somente nos casos do art. 9º, III, da lei 8.245/1991, ou seja: a falta de pagamento de alugueis e demais encargos. É o que se lê no art. 66-A: o procedimento de despejo extrajudicial, previsto nos arts. 66-B ao 66-H, aplica-se, exclusivamente, às hipóteses de desfazimento do contrato de locação por falta de pagamento, nos termos do art. 9º, III desta lei.
Portanto, acertadamente o PL deixa de autorizar o despejo extrajudicial para casos que envolvam análise probatória mais rigorosa.
O despejo extrajudicial e institutos assemelhados no direito comparado
Quando se fala em inovação legislativa, é natural a pesquisa da inovação no direito comparado. Embora, em pesquisa, não se tenha encontrado exatamente um "despejo extrajudicial" no direito estrangeiro, alguns países têm iniciativas legislativas que visam a redução de prazos para maior celeridade.
Em Portugal, o decreto-lei 1/13 criou uma modalidade especial de despejo, através do BNA - Balcão Nacional de Arrendamento. Essa modalidade oferece prazos mais curtos que o despejo tradicional no país e conta com a participação do poder judiciário.
Na França, o huissier (oficial de justiça) desempenha um relevante papel no despejo5. Quando do inadimplemento, o oficial de justiça notifica o locatário, tentando encontrar uma solução amigável. Não havendo êxito, é solicitada uma ordem de despejo ao juiz.
Na Espanha, o despejo ocorre no poder judiciário, mas a lei processual civil6 oferece procedimentos sumários para o despejo por falta de pagamento, com prazos mais curtos.
Verificada essa questão, passa-se a tratar de como funcionaria o procedimento de despejo extrajudicial, caso o PL seja convertido em lei.
Leia a coluna na íntegra.
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1 Há, no meio jurídico, aqueles que criticam o nome desjudicialização. Como se o prefixo "des" trouxesse a conotação de pura negação da judicialização, sem refletir os objetivos construtivos por trás do movimento jurídico.
2 Informação colhida na justificação apresentada no projeto de lei nº 3999/2020, que tramita na Câmara dos Deputados.
3 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.
4 Disponível aqui.
5 Lei nº 89-462, de 6 de julho de 1989, que alterou a Lei nº 86-1290, de 23 de dezembro de 1986.
6 Ley 1/2000, de 7 de enero, de Enjuiciamiento Civil (Lei de Processo Civil).
Fonte: Migalhas
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