Herança digital: Entre senhas perdidas e memórias disputadas

Herança digital: Entre senhas perdidas e memórias disputadas

Andrey Guimarães Duarte

Herança digital exige testamento e orientação jurídica, diante da ausência de lei específica para criptoativos, redes sociais e memórias pessoais.

terça-feira, 1 de julho de 2025 - Atualizado em 30 de junho de 2025 14:51

Com o avanço acelerado da tecnologia e a digitalização da vida cotidiana, surge um novo campo de reflexão jurídica: a herança digital. Mais do que uma expressão moderna, trata-se de uma realidade concreta que envolve os bens, dados e direitos acumulados por uma pessoa no ambiente virtual ao longo da vida, e que, após sua morte, podem ou não ser transmitidos aos seus herdeiros. A ausência de uma legislação específica sobre o tema no Brasil torna o debate ainda mais necessário, exigindo dos operadores do Direito sensibilidade e rigor técnico para lidar com questões inéditas no campo sucessório.

Diante desse quadro, no qual nossas relações pessoais e patrimoniais migraram em grande parte para o ambiente digital, tivemos um efeito até certo ponto inesperado, qual seja, os aspectos patrimoniais e pessoais das pessoas tiveram sua linha divisória reduzida ou eliminada. Usamos aplicativos e ferramenta digitais tanto para nossas manifestações sociais como comerciais. Em uma mesma manifestação no mundo digital encontramos aspetos financeiros e personalíssimos com impacto direto no Direito Sucessório. Esse efeito torna a solução muito mais complexa. Vejamos:   

Em primeiro lugar, é preciso compreender o que se entende por herança digital. Ela abrange todo o conjunto de ativos digitais, desde criptomoedas e saldos em carteiras virtuais, até contas de redes sociais, arquivos em nuvem, plataformas de streaming, milhas aéreas e conteúdos monetizados na internet. Esses ativos podem ser classificados, de forma geral, em três grandes grupos: aqueles com valor econômico, que são naturalmente transmissíveis aos herdeiros, aqueles ligados à personalidade do falecido, como mensagens, imagens e dados íntimos e aqueles que se encontram em zona cinzenta possuindo tanto aspectos financeiros quanto pessoais, cuja destinação pode gerar maior controvérsia.

Os bens digitais com conteúdo financeiro são aqueles que possuem valor econômico objetivo e que, em regra, integram o acervo hereditário. São exemplos clássicos: criptomoedas, saldos em plataformas de investimento, canais monetizados em redes sociais, carteiras digitais e até mesmo milhas aéreas, dependendo do regulamento da empresa emissora. O caráter patrimonial desses bens permite que sejam transmitidos aos herdeiros como qualquer outro bem material ou imaterial de valor econômico. A grande dificuldade, nesses casos, está mais na acessibilidade técnica, como o conhecimento de senhas, chaves criptográficas ou permissões de acesso do que na natureza jurídica da transmissão.

Essa diferenciação não é apenas conceitual, mas interfere diretamente na transmissibilidade desses bens após a morte do titular, exigindo um olhar mais atento dos operadores do Direito.

Embora o ordenamento jurídico brasileiro ainda não disponha de uma norma específica sobre a sucessão digital, diversos dispositivos legais oferecem fundamento para a resolução de casos concretos. A Constituição Federal, ao assegurar os direitos à intimidade, à privacidade e à herança, serve de base interpretativa. O CC, por sua vez, regula a sucessão em geral e protege os direitos da personalidade. A LGPD, embora não trate diretamente de herança, estabelece princípios importantes sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive após a morte, servindo como referência para decisões judiciais.

A aplicação desses princípios, no entanto, não é simples. Por exemplo, o acesso a criptomoedas depende, em regra, da posse das chaves criptográficas, que muitas vezes não são deixadas aos herdeiros. Diferentemente de contas bancárias tradicionais, as criptos operam em um sistema descentralizado e, na maioria dos casos, não oferecem mecanismos de recuperação por terceiros. Sem as chaves, o patrimônio digital pode se tornar inacessível. Por isso, é recomendável que o titular organize, ainda em vida, um inventário de seus ativos digitais e registre sua vontade quanto à destinação desses bens por meio de testamento lavrado por tabelião de notas.

Por outro lado, os bens com conteúdo personalíssimo dizem respeito à esfera íntima da pessoa falecida, ou seja, configuram verdadeiros direitos da personalidade. São dados e registros que refletem sua identidade, privacidade e relações pessoais, como mensagens, e-mails, arquivos pessoais, diários digitais, fotografias, listas de contatos e memórias armazenadas em plataformas online. Esses bens, por sua própria natureza, não são automaticamente transferíveis. O ordenamento jurídico brasileiro, seguindo a tradição civilista, protege os direitos da personalidade, mesmo após a morte, e impõe limites à sua transmissibilidade. Nesses casos, mais do que o valor econômico, o que está em jogo é o respeito à memória, à vontade presumida e à dignidade do falecido.

E na prática revela-se uma terceira categoria de difícil enquadramento: os bens digitais de natureza mista, que combinam simultaneamente elementos econômicos e aspectos da personalidade. Esses bens representam um verdadeiro desafio para a teoria tradicional da sucessão, pois escapam às classificações binárias. Eles não são meramente transmissíveis como um bem patrimonial qualquer, tampouco podem ser tratados com o rigor da indisponibilidade dos direitos da personalidade. Neles, convivem, de maneira inseparável, o valor financeiro e a projeção subjetiva do falecido.

Um exemplo paradigmático é o de influenciadores digitais. Seus perfis em redes sociais muitas vezes possuem milhares ou milhões de seguidores, geram receita com publicidade e são estruturados como ativos profissionais. No entanto, a essência desses perfis está na própria figura do titular, sua imagem, voz, estilo, posicionamento e conteúdo pessoal, que não são plenamente substituíveis. A simples transmissão do perfil aos herdeiros, sem considerar o aspecto personalíssimo, pode gerar desvirtuamento da identidade original, prejudicando inclusive a relação com os seguidores e parceiros comerciais.

Outro exemplo é o de artistas ou escritores que mantinham blogs, canais ou arquivos com obras inéditas. Tais produções podem ter grande valor comercial após a morte, mas ao mesmo tempo podem representar escolhas íntimas, conteúdos inacabados ou reflexões que o autor não desejava tornar públicas. A decisão sobre publicá-los ou não toca diretamente na vontade presumida do falecido e impõe um juízo ético que vai além da questão patrimonial.

Essas situações híbridas, nas quais um bem digital possui tanto valor econômico quanto conteúdo personalíssimo, ganharam complexidade com o advento da inteligência artificial, pensemos na utilização da imagem de uma figura pública falecida em ações publicitárias por meio de inteligência artificial. Os herdeiros tem o direito de autorizar ou explorar essa imagem?

Outro exemplo sensível diz respeito às redes sociais. Algumas plataformas permitem que o titular defina previamente o destino de sua conta após a morte como memorialização ou exclusão, mas muitas vezes essa vontade não é formalizada, gerando disputas entre familiares. E mesmo quando há consentimento para o acesso, permanece o dilema ético e jurídico: até que ponto é legítimo permitir que terceiros leiam mensagens privadas ou acessem arquivos íntimos? Nesses casos, o conteúdo e sua finalidade devem ser avaliados, distinguindo-se os bens com valor econômico dos de natureza personalíssima. E ganha importância que a pessoa tenha estabelecido regras prévias que sirvam de direção.

Recentemente uma plataforma buscou criar uma solução própria, a Binance, em que criou espaço para indicação de contato de emergência e solicitações de herança. É uma evolução, mas ainda deixa margem para dúvidas, em especial quanto os efeitos jurídicos e reconhecimento judicial, na medida em que a manifestação de vontade com produção de efeito após a morte é uma das manifestações mais protegidas pelo direito e por isso estabelece regras rígidas para a feitura de testamentos.    

Diante desse cenário, cresce a importância da educação jurídica e da conscientização da sociedade sobre a necessidade de planejamento sucessório digital. Organizar os ativos, manter registros acessíveis de contas e senhas (de forma segura e lícita), definir procuradores ou testamenteiros, e formalizar instruções sobre o destino dos dados e conteúdo são medidas que evitam conflitos e garantem que a vontade do titular seja respeitada.

Em reforço, frente a essa complexidade, ganha ainda mais relevância o papel do testamento como instrumento de manifestação da vontade. Cláusulas específicas sobre bens digitais de natureza mista podem ajudar a preservar a integridade da memória do falecido, ao mesmo tempo em que oferecem segurança jurídica aos herdeiros. O tabelião de notas, ao orientar o testador, pode contribuir para decisões ponderadas e adequadas à singularidade de cada caso.

A herança digital é um fenômeno contemporâneo que revela as lacunas do Direito diante das novas tecnologias. Apesar da ausência de regulamentação específica, os fundamentos constitucionais e civis, aliados à interpretação evolutiva do Direito, têm fornecido respostas razoáveis aos desafios que surgem. Contudo, é inegável que a regulamentação clara e específica da matéria se faz urgente, garantindo segurança jurídica e respeito à memória digital dos indivíduos. Até lá, cabe a cada cidadão assumir o protagonismo sobre o seu legado virtual, organizando-se para que seus bens digitais não se percam no vazio da nuvem.

Em outras palavras, a herança digital é parte do que somos e do que deixamos, nossas palavras, imagens, memórias e conquistas. Ignorar isso é permitir que tudo se perca no silêncio das senhas esquecidas ou nas mãos erradas. Planejar o destino do nosso legado virtual não é apenas uma questão jurídica, mas um ato de amor por quem continua e de cuidado com a própria história. É garantir que até no fim, sejamos lembrados com verdade, dignidade e respeito.

Andrey Guimarães Duarte
Tabelião de notas desde 2004. Há 10 anos titular do 4º Tabelião de Notas de São Bernardo do Campo. Presidente da Associação de Titulares de Cartórios (ATC), ex-presidente e atual vice-presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção São Paulo (CNB/SP). Diretor do Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal (CNB/CF). Conselheiro consultivo do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (IBRADIM). Ex-delegado de polícia em São Paulo.

Fonte: Migalhas

                                                                                                                            

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