O divórcio liminar sob lentes de gênero
O divórcio liminar sob lentes de gênero
Leandro Reinaldo da Cunha
quinta-feira, 5 de junho de 2025
Atualizado em 4 de junho de 2025 09:46
Ganhou grande repercussão nas mídias especializadas em noticiar decisões relevantes para o universo jurídico o julgamento do REsp 2.189.143, publicado em 21 de março de 2025, no qual o STJ, reconheceu a possibilidade do divórcio liminar, pautado no caráter potestativo da dissolução do casamento.
Em linhas singelas, o que se viu, principalmente das manchetes apresentadas, é que agora o divórcio poderia ser decretado por uma decisão liminar, em atenção ao "predomínio da vontade" dos cônjuges1, podendo o divórcio "ser decretado antes de definição de guarda e partilha"2.
Surge, assim, para grande parte da população, o divórcio liminar, figura já discutida de longa data, mesmo que com outras nomenclaturas, como a de divórcio impositivo, cunhada pelo desembargador do TJ/PE, Jones Figueiredo Alves. A questão do divórcio impositivo ou unilateral se faz também presente no projeto de reforma do CC (PL 4/25), no art. 1.582-A.
As manchetes mencionadas mal tocam a superfície do cerne da decisão proferida, de forma que se faz necessária uma análise mais detida sobre o tema, principalmente ante aos aspectos de gênero que precisam ser considerados, já que estes permeiam a referida decisão.
Para uma adequada compreensão do todo, é necessário que se leia, ao menos, a rubrica da ementa do acórdão, a qual segue:
Civil. Processual civil. Direito de família. Recurso especial. Ação de divórcio cumulada com guarda, alimentos e partilha de bens. Inclusão dos filhos no polo ativo da ação. Desnecessidade. Súmula 283/STF. Direito real de habitação. Instituto de direito sucessório. Aplicação por analogia ao divórcio. Impossibilidade. Divórcio liminar. Direito potestativo. Desnecessidade de contraditório. Tutela de evidência. Aplicação da técnica processual mais adequada. Possibilidade de julgamento parcial de mérito em caráter liminar.
A decisão versa, portanto, sobre outras questões que não apenas o divórcio liminar, tratando da necessidade ou não da inclusão dos filhos no polo ativo da ação de divórcio cumulada com guarda, alimentos e partilha de bens, como também quanto a possibilidade de que se estabeleça direito real de habitação, em analogia ao que existe no direito sucessório, para o divorciado.
Considerando o escopo da presente coluna, me aterei apenas à figura do divórcio liminar, ainda que as outras questões também se mostrem interessantes e merecedoras de uma discussão técnica em momento posterior, especialmente a hipótese de direito real de habitação.
Direcionando o olhar sobre o REsp 2.189.143 existem 3 pontos que merecem uma especial atenção: (i) o que é o divórcio liminar; (ii) o julgamento parcial de mérito, e; (iii) o recorte de gênero.
Divórcio liminar
A natureza potestativa da dissolução do casamento, consolidada com a EC 66, de 13 de julho de 2010, é o sustentáculo básico do divórcio liminar, que parte da premissa de que a atividade do magistrado em sede de dissolução do casamento é meramente homologatória, cabendo-lhe apenas reconhecer a vontade de quem é casado de não mais manter-se vinculado àquele matrimônio.
Ante à impossibilidade de que o outro cônjuge possa apresentar qualquer objeção que viesse a obstar a dissolução do casamento, é de se entender que não há a necessidade de se estabelecer o contraditório em processos dessa natureza, havendo o outro cônjuge apenas que se sujeitar à manifestação de vontade externada de por termo àquela relação.
O REsp 2.189.143 traz até mesmo a seguinte assertiva: "basta a apresentação de certidão de casamento atualizada e a manifestação de vontade da parte para que se comprove o vínculo conjugal e a vontade de desfazê-lo".
No mesmo sentido do que já temos discutido há tempos, com relação ao divórcio post mortem3, qualquer lapso temporal entre o pleito e a prolação da sentença de divórcio há de ser atribuída ao Judiciário, haja vista que a dissolução desse casamento já se mostra efetivada de fato, faltando apenas a manifestação do magistrado afirmando que reconhece aquela situação relatada no pleito formulado4.
Não acolher de forma incontinenti o pedido de divórcio chega a ser temerário, pois essa demora pode encerrar consequências relevantes, especialmente no âmbito do direito sucessório, como já me manifestei em outros escritos5, além de todo o custo psicológico que pode essa prolongação da questão trazer.
Até mesmo o temor de alguns de que o divórcio liminar geraria uma insegurança jurídica, pelo risco de não se saber que a ação visando a dissolução do casamento já fora proposta e julgada, não mais se sustenta ante ao advento de todo o arcabouço tecnológico existente nos dias atuais.
A massiva inclusão digital, atrelada à integração dos cartórios, ajuda no acesso a essa informação, que certamente não surpreenderá quem não esteja já separado de fato. Aos que se encontram nessa situação, cientes da ruptura da convivência conjugal, é plausível que presumam que a decretação do divórcio é iminente e só depende da chancela do Poder Judiciário
Postergar a decretação do divórcio não traz, portanto, nenhum benefício jurídico, constituindo-se, apenas, como um manancial para uma série de celeumas desnecessárias, de sorte que o divórcio liminar se mostra como uma solução imperiosa.
Julgamento parcial de mérito
O art. 356 do atual CPC versa sobre o "Julgamento Antecipado Parcial do Mérito", uma das inovações trazidas pelo novo texto processual em relação ao revogado, que permite a resolução fracionada do processo, com relação àquela parcela de lide que se mostra incontroversa ou em condições de imediato julgamento.
O tema da possibilidade de manifestação que coloca termo à parte da lide me é muito cara, tendo sido essa possibilidade, ainda sob a égide do CPC de 1973, a questão de fundo tanto do meu trabalho de conclusão da especialização lato sensu, reduzido em artigo publicado em 20086, como também da dissertação de mestrado7.
Aquilo que eu denominava de JAPIP - Julgamento Antecipado da Parte Incontroversa do Pedido é a ideia que lastreia a construção trazida no art. 356 do atual CPC. Quando há um pedido ou parte dele sobre o qual não se estabeleça dissonância, é premente que a decisão seja proferida prontamente, sem que se postergue a solução para o momento em que todo o objeto da demanda se mostre em condições de ser sentenciado.
Na hipótese do REsp 2.189.143 julgado pelo STJ, nos exatos termos da lei, foi dada decisão decretando o divórcio, julgando tal pedido, mantendo-se a lide quanto aos demais pontos, constando do acórdão até mesmo a afirmação de que "a decisão que decreta o divórcio é definitiva, não podendo ser alterada em sentença".
Nota-se, portanto, que trata-se de manifestação exauriente do magistrado, capaz de produzir coisa julgada em não sendo interposto o recurso cabível no prazo legal.
E é exatamente sobre a questão do recurso cabível que entendo que é pertinente tecer algumas considerações breves.
O art. 356 do atual CPC, ao trazer o § 5º, assevera que, em sede de Julgamento Antecipado Parcial do Mérito, o recurso cabível seria o agravo de instrumento. O ponto que se suscita aqui é: qual a natureza dessa decisão?
Sentença, segundo nosso ordenamento jurídico, é "o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução", conforme o disposto no art. 203, § 1º do CPC. Decisão interlocutória seria, de modo excludente, a decisão que não possa ser enquadrada como sentença.
Seguindo esses parâmetros, me parece sólido se poder afirmar que a decisão proferida com base no art. 356 cumpre os requisitos de uma sentença, com relação àquele pedido em específico. Aquela parte da lide não será mais objeto de deliberação daquele magistrado, de forma que, se for considerado cada pedido uma lide independente, aquele estaria finalizado.
Assim, ignorando-se o fato de se tratar de uma decisão que se reveste de natureza jurídica de sentença, face ao seu conteúdo decisório, a legislação determina que esta venha a ser atacada com o recurso que se manuseia para enfrentar decisões interlocutórias.
A escolha pelo recurso de agravo parece fundada no dogma da unicidade da sentença (della unità e unicità della deciozione), o qual não está expresso na lei, e que nos leva a enfrentar mais uma das facetas de nosso estado esquizofrênico8, no qual uma decisão definitiva, que põe termo a um pleito, será atacada por agravo de instrumento ou por apelação, dependendo do momento em que foi proferida, mesmo que o parâmetro da lei para definir se a decisão comporta contornos de uma sentença esteja vinculado ao seu conteúdo e não ao instante em que é proferida9.
Essa questão, em verdade, nos parece meramente acadêmica e de pouca relevância prática, já que, se houver mesmo a incontrovérsia, nenhum recurso haverá de ser conhecido ante a falta de sucumbência do recorrente. No caso exato do REsp 2.189.143, sendo o pedido apresentado por um dos cônjuges não haveria nenhum aspecto que pudesse sustentar um recurso, já que nenhum dos consortes "perdeu" nada, inexistindo, assim, o requisito elementar para expressar qualquer inconformismo com a decisão proferida recurso.
Recorte de gênero
Questão que não foi muito explorada quando se mencionou a decisão do REsp 2.189.143 está relacionada com um elemento de gênero que envolve o caso em específico.
Da leitura do acórdão se verifica que a cônjuge "deixou o lar conjugal juntamente com sua filha" em razão de um "desentendimento entre o casal", tendo retornado "ao imóvel após a concessão de tutela de urgência, para que o recorrido fosse retirado da residência comum" e que, face "a situação de violência doméstica, a recorrente obteve medidas protetivas que impuseram ao réu a proibição de se aproximar de si e manter consigo qualquer contato".
Constata-se, assim, que, em caso, não apenas havia a potestatividade que é inerente ao divórcio a fundamentar o pleito, mas também a existência de uma constatação prévia de violência doméstica que ensejou na determinação de medidas protetivas.
Qual seria a objeção do cônjuge afastado do lar ao divórcio liminar? Que o casamento fosse mantido para que a violência pudesse ser restabelecida? Tentar fazer com que, judicialmente, houvesse a imposição de uma reconciliação, reeditado uma práxis muito comum em outros tempos? Forçar a manutenção do casamento visando o interesse social da perpetuação da "família tradicional"?
A atual dinâmica social demonstra que a concessão liminar do divórcio não traria qualquer prejuízo para a sociedade ou mesmo para o casal. A visão tradicional que sempre laborou por manter a todo custo um casamento já se mostra amplamente defasada.
Tratava-se de uma concepção totalmente pautada em uma sociedade que via a mulher como um simples apêndice do marido, praticamente mais um dos bens que compunham o seu patrimônio. Uma mulher que pertencia ao marido, que necessitava, com base no que constava expressamente do texto legal, de sua autorização até mesmo para trabalhar.
Essa visão ainda segue, mesmo já passados mais de um quarto do século XXI, impondo seus efeitos nefastos, com a manutenção da ideia de que os deveres de cuidado familiar são exclusivos das mulheres e do feminino, de forma não remunerada, como reflexo de uma condição nata.
Basta considerar que a maioria dos divórcios "não consensuais", segundo o IBGE, são requeridos pela mulher10, isso depois de muito ponderar sobre as consequências econômicas que sobre ela incidirão, as quais, muitas vezes, fazem com venham a protelar o pleito de dissolução do casamento11 ou mesmo a sequer cogitar o divórcio.
Com essas considerações acredito que tenha trazido lume a alguns pontos relevantes sobre o tema do divórcio liminar que merecem uma maior atenção tanto da doutrina quando do Poder Judiciário.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 Disponível aqui.
4 KERTZMAN, Ivan; CUNHA, Leandro Reinaldo da; HORIUCHI, Luana. Manual da pensão por morte: Dependentes dos segurados e Novos arranjos familiares. São Paulo: Lejur, 2025, p. 155.
5 CUNHA, Leandro Reinaldo da; ASSIS, Vivian S. Divórcio post mortem. Revista dos Tribunais. São Paulo. Impresso, v.1004, p.51 - 60, 2019.
6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Do Julgamento Antecipado da Parte Incontroversa do Pedido (JAPIP) - A Sentença Parcial de Mérito. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, v.12, p.259 - 271, 2008
7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Do julgamento antecipado da parte incontroversa do pedido nas ações de indenização decorrentes das relações de consumo, Dissertação de mestrado em direito defendido perante o Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Metropolitana de Santos em 2008.
8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17.
9 CUNHA, Leandro Reinaldo da; ZAMBONE, Alessandra Maria Sabatine. O julgamento antecipado parcial do mérito e o exercício do direito recursal, no prelo.
10 Disponível aqui.
11 Disponível aqui.
Fonte: Migalhas