Artigo - Pai que abandona o filho tem direito à sua herança? – por Regina Beatriz Tavares da Silva

Artigo - Pai que abandona o filho tem direito à sua herança? – por Regina Beatriz Tavares da Silva

Publicado em: 15/03/2018

O abandono do pai pode gerar várias consequências e punições na órbita jurídica, desde a tipificação como crime (Código Penal, art. 133), até a sua condenação no pagamento de indenização pelos danos morais e materiais causados ao filho (Código Civil, art. 186).

O assunto deste artigo refere-se ao abandono no Direito Sucessório, ou seja, ao direito à herança do pai que abandona o filho.

Há certos familiares aos quais a herança, ou uma parte dela, é assegurada pela lei. Esses herdeiros chamam-se necessários e parte da herança que deve a eles ser reservada denomina-se legítima.

A legítima equivale à metade do patrimônio de quem tem herdeiros necessários.

Assim, os herdeiros necessários são aqueles para quem o indivíduo que morreu deverá deixar, obrigatoriamente, metade do patrimônio (legítima), de tal forma que apenas a outra metade (cota disponível) poderá ser disposta em testamento.

Em seu art. 1.845, o Código Civil estabelece como herdeiros necessários os descendentes (por exemplo, filhos e netos), ascendentes (como os pais e avós) e o cônjuge.

Apesar de todas as proteções que a lei oferece, o herdeiro necessário pode ser excluído da herança, o que pode ocorrer por meio da indignidade ou da deserdação.

A indignidade, que é declarada por meio de ação ajuizada após a morte do autor da herança (aquele que faleceu com patrimônio) por qualquer interessado na sucessão ou pelo Ministério Público, tem suas hipóteses previstas no art. 1.814 do Código Civil: participação em tentativa ou homicídio doloso contra o autor da herança ou contra seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente; calúnia em juízo ou crime contra a honra em face do falecido; violência ou meios fraudulentos que impeçam o autor da herança de dispor livremente de seus bens.

Além das razões acima, o Código Civil ainda prevê a possibilidade de deserdação, consistente na vontade manifestada pelo próprio autor da herança em testamento no sentido de excluir da sucessão alguns ou algum de seus herdeiros necessários.

A deserdação pode ocorrer quando verificada uma das causas acima referidas de indignidade e também por ofensa física, injúria grave, relações sexuais do herdeiro com o cônjuge ou o companheiro do falecido, assim como o desamparo do autor da herança que tenha deficiência mental ou grave enfermidade, como estabelecem os artigos 1.962 e 1.963 do Código Civil.

Como se vê, o desamparo ou abandono quando o autor da herança não é portador de deficiência mental ou enfermidade grave não está incluído na relação de causas da indignidade ou da deserdação.

A ordem natural é de que os pais faleçam antes dos filhos. Mas imaginemos a seguinte situação inversa.

José, que fora abandonado por seu pai, quando ainda era criança, foi criado por sua mãe, que faleceu quando ele ainda era jovem, e por seu tio materno. José, solteiro e sem filhos, morre aos cinquenta anos de idade, deixando patrimônio construído ao longo de sua vida em razão do apoio que recebeu de seu tio materno em sua formação educacional e profissional. Em testamento feito pouco antes de sua morte, José se manifestou no sentido de excluir seu pai, ainda vivo, do recebimento da herança, em razão do abandono paterno, deixando todo o seu patrimônio para o tio, que não é herdeiro necessário.

Diante desses fatos, pergunta-se: a manifestação de vontade feita por José é válida? Pode José deserdar seu pai com base na justificativa de que fora abandonado quando criança, ainda que esta hipótese não esteja prevista de forma expressa pelo Código Civil?

A esse respeito, precisamos pensar um pouco sobre qual foi o espírito da lei ao estabelecer as hipóteses de exclusão da herança.

Certamente, não haveria como o legislador prever todos os fatos graves que podem dar causa à indignidade ou à deserdação, diante da variedade de situações da vida.

Nesse sentido, perceba-se que embora o Código Civil faça menção apenas à possibilidade de deserdar pais que tenham abandonado filho deficiente ou gravemente enfermo, não se pode negar os danos emocionais e psicológicos causados pelo abandono que o pai de José praticou em relação ao filho.

Ademais, se de acordo com o art. 1.963 a injúria grave, que é ofensa à honra, pode dar ensejo à perda da herança, é preciso perceber que a honra de José foi ofendida por seu pai, ao abandoná-lo, tanto no aspecto social, como no de sua autoestima.

Inegável, portanto, que o abandono moral e material do pai gera danos à honra do filho, equiparando-se, se não suplantando em gravidade, qualquer das situações previstas expressamente no Código Civil para a indignidade e a deserdação.

Perceba-se que sob a nomenclatura do “abandono moral”, não me refiro à mera falta de afeto. Tampouco estou concordando com aqueles que colocam a afetividade acima de quaisquer regras jurídicas, elevando-a a critério máximo de decisão para todos os casos no Direito de Família e no Direito Sucessório.

Muito além da falta de afeto, de natureza subjetiva por tratar-se de sentimento, o abandono é uma situação objetiva e de possível comprovação, porque implica na violação do dever de cuidado que todos os pais devem ter para com seus filhos, de acordo com art. 229 da Constituição Federal: “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. Trata-se de um imperativo constitucional, que se reflete na legislação infraconstitucional, conforme dispõe o Código Civil, em seu artigo 1.634, pelo qual “Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: dirigir-lhes a criação e a educação”.

Em suma, não há que se falar no dever de amar ou de ter afeto, mas no dever de cuidado, que consiste na obrigação de convívio e criação, o que é necessário à formação moral, psicológica e emocional de todas as pessoas.

Carlos Eduardo Minozzo Poletto, em excelente obra, fruto de seu mestrado, publicada no livro Indignidade sucessória e deserdação, pela Editora Saraiva, examina profundamente esse tema.

Por essa razão, embora não esteja expressamente previsto no Código Civil, é preciso melhor refletir sobre o abandono moral ou material como causa da perda do direito à herança necessária dos ascendentes.

*Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Doutora em Direito pela USP e advogada

Fonte: Estadão
Extraído de Recivil

Notícias

Lacunas e desafios jurídicos da herança digital

OPINIÃO Lacunas e desafios jurídicos da herança digital Sandro Schulze 23 de abril de 2024, 21h41 A transferência de milhas aéreas após a morte do titular também é uma questão complexa. Alguns programas de milhagens já estabelecem, desde logo, a extinção da conta após o falecimento do titular, não...

TJMG. Jurisprudência. Divórcio. Comunhão universal. Prova.

TJMG. Jurisprudência. Divórcio. Comunhão universal. Prova. APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE DIVÓRCIO - COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS - PARTILHA - VEÍCULO - USUCAPIÃO FAMILIAR - ÔNUS DA PROVA - O casamento pelo regime da comunhão universal de bens importa na comunicação de todos os bens presentes e futuros...

Reforma do Código Civil exclui cônjuges da lista de herdeiros necessários

REPARTINDO BENS Reforma do Código Civil exclui cônjuges da lista de herdeiros necessários José Higídio 19 de abril de 2024, 8h52 Russomanno ressalta que, além da herança legítima, também existe a disponível, correspondente à outra metade do patrimônio. A pessoa pode dispor dessa parte dos bens da...

Juiz determina que valor da venda de bem de família é impenhorável

Juiz determina que valor da venda de bem de família é impenhorável Magistrado considerou intenção da família de utilizar o dinheiro recebido para adquirir nova moradia. Da Redação terça-feira, 16 de abril de 2024 Atualizado às 17:41 "Os valores decorrentes da alienação de bem de família também são...