Artigo: Leilão extrajudicial exige comunicação formal ao devedor fiduciante – por Rafaela Mendes do Couto

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A ausência de intimação pessoal do devedor fiduciante compromete a validade do leilão extrajudicial, à luz da evolução legislativa e da jurisprudência recente

Artigo: Leilão extrajudicial exige comunicação formal ao devedor fiduciante – por Rafaela Mendes do Couto

A intimação pessoal do devedor fiduciante nos procedimentos de leilão extrajudicial previstos na lei 9.514/1997 passou a ocupar posição central no debate jurídico contemporâneo sobre garantias contratuais e proteção da moradia. A questão, que inicialmente girava em torno da conveniência da comunicação formal ao devedor, evoluiu para uma exigência normativa e jurisprudencial imprescindível à validade do procedimento, à luz dos princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa e da dignidade da pessoa humana.

O regime da alienação fiduciária de bem imóvel, introduzido com o intuito de acelerar a execução das garantias reais no mercado imobiliário, conferiu ao credor fiduciário poderes para consolidar a propriedade do imóvel e realizar o leilão extrajudicial sem necessidade de decisão judicial prévia. Essa racionalização procedimental, embora eficiente do ponto de vista econômico, gerou tensões normativas justamente pela ausência de mecanismos claros que assegurassem a efetiva ciência do devedor acerca dos atos que culminariam na perda do seu bem.

O ponto mais crítico dessa tensão reside na ausência de intimação específica para a realização do leilão extrajudicial, que, até 2017, não era expressamente exigida pela legislação.

A redação original do art. 26, §1º, da lei 9.514/1997 previa apenas a notificação do devedor para purgar a mora, sem detalhar a forma nem exigir comunicação posterior acerca do leilão. Esse vácuo normativo permitia que, uma vez consolidada a propriedade no nome do credor, os leilões fossem realizados com publicidade genérica, por meio de edital, sem comprovação de que o devedor tivesse efetivo conhecimento do ato.

Tal prática era especialmente grave nos casos em que o imóvel era a residência da família, implicando violação direta ao direito fundamental à moradia.

A resposta a esse problema começou a se estruturar em dois eixos complementares: legislativo e jurisprudencial.

O primeiro avanço relevante ocorreu com a lei 13.465/17, que alterou o §3º do art. 26 para exigir a intimação pessoal do devedor fiduciante para fins de purgação da mora, preferencialmente realizada pelo oficial do registro de imóveis. Essa mudança, embora dirigida apenas à fase prévia ao leilão, foi interpretada como indicativo da crescente preocupação com a efetiva ciência do devedor sobre o risco de perda do imóvel.

Mais recentemente, a lei 14.711/23, o chamado Marco Legal das Garantias, aperfeiçoou o sistema e, desta vez, inseriu expressamente a exigência de comunicação ao devedor acerca das datas, horários e locais dos leilões extrajudiciais, conforme disposto no § 2º-A do art. 27 da lei 9.514/1997. A nova redação reforça a obrigatoriedade da intimação pessoal, por meio de correspondência enviada aos endereços constantes do contrato, inclusive ao endereço eletrônico eventualmente indicado, garantindo ao devedor ciência inequívoca dos atos que possam resultar na perda do imóvel. Com isso, restou definitivamente positivado aquilo que a jurisprudência e a doutrina já vinham afirmando: a intimação para ciência do leilão constitui requisito indispensável à validade do procedimento, assegurando a plena concretização dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

A jurisprudência do STJ exerceu papel determinante nesse processo evolutivo. Mesmo antes da lei 13.465/17, a Corte já reconhecia que a intimação por edital, sem o esgotamento das tentativas de localização do devedor, violava o devido processo legal.

Essa linha foi consolidada, por exemplo, nos seguintes precedentes:

“A jurisprudência do STJ se encontra consolidada no sentido da necessidade de intimação pessoal do devedor acerca da data da realização do leilão extrajudicial, entendimento que se aplica aos contratos regidos pela lei 9.514/1997.” (AgInt no AREsp 1.876.057/CE, rel. min. Raul Araújo, DJe 6/11/2023)

“A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de ser possível a purga da mora em contrato de alienação fiduciária de bem imóvel quando já consolidada a propriedade em nome do credor fiduciário […].” (AgInt no AREsp 1.286.812/SP, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 14/12/2018)

Em tais julgados, destacou-se que o direito à informação do devedor não se exaure na comunicação para purgar a mora, sendo necessário garantir-lhe também a oportunidade de participar do leilão ou exercer o direito de preferência.

O Tribunal também tem se posicionado reiteradamente contra a utilização prematura da intimação por edital. Esse meio de comunicação só pode ser validamente utilizado quando esgotadas todas as tentativas de intimação pessoal, incluindo diligências em endereços cadastrados, envio por AR, contato por e-mail com confirmação de recebimento e tentativas presenciais.

A jurisprudência é clara ao reconhecer que a intimação editalícia é medida excepcional, aplicável apenas em hipóteses de ocultação intencional do devedor ou localização comprovadamente impossível.

Do ponto de vista prático, essa exigência formal apresenta desafios aos credores fiduciários, notadamente em casos de devedores que se ocultam ou mudam de endereço com frequência. Contudo, tais dificuldades não justificam a dispensa da intimação pessoal.

O sistema deve buscar soluções que conciliem a efetividade do crédito com a proteção dos direitos fundamentais do devedor. Isso inclui o uso de meios eletrônicos com comprovada ciência, a previsão de prazos razoáveis e a exigência de registro formal das tentativas de comunicação.

Nesse sentido, decisões como a do REsp 1.733.777/SP reforçam que a exigência de intimação pessoal passou a ser obrigatória somente após a vigência da lei 13.465/17. Para contratos celebrados anteriormente, a ausência de notificação específica sobre o leilão não acarretava, automaticamente, a nulidade do ato. A partir de 2017, entretanto, a omissão da intimação do devedor passou a configurar vício formal insanável.

Esse posicionamento é coerente com a função social do contrato e com os princípios da boa-fé objetiva e do equilíbrio contratual. O contrato de alienação fiduciária, especialmente quando garante financiamento de imóvel residencial, não pode ser interpretado dissociado dos direitos fundamentais do devedor.

A obrigatoriedade da intimação pessoal para o leilão extrajudicial reflete um amadurecimento do ordenamento jurídico brasileiro. A exigência deixa de ser mero requisito formal e assume o papel de verdadeira garantia procedimental, essencial à preservação do contraditório, à eficácia do direito de defesa e à legitimidade dos atos que envolvem a perda forçada do patrimônio.

Em última análise, a trajetória da exigência de intimação pessoal do devedor fiduciante revela um esforço consistente do legislador e do Judiciário em conciliar eficiência e justiça no campo da execução extrajudicial. O respeito a essa formalidade assegura a estabilidade das relações contratuais e protege os fundamentos do próprio Estado de Direito, reafirmando o papel do processo como instrumento de realização da cidadania e da dignidade humana.

Fonte: Migalhas
Extraído de CNBSP

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