Ação de reintegração de posse - Servidão de passagem...

Ação de reintegração de posse - Servidão de passagem - Possibilidade de proteção possessória - Súmula 15 do STF - Mera tolerância - Apelo não provido

AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE - SERVIDÃO DE PASSAGEM - POSSIBILIDADE DE PROTEÇÃO POSSESSÓRIA - SÚMULA 415 DO STF - DEMONSTRAÇÃO - AUSÊNCIA - MERA TOLERÂNCIA - APELO NÃO PROVIDO - SENTENÇA MANTIDA

- O ordenamento jurídico assegura ao possuidor, para a proteção da sua posse, o manejo dos interditos possessórios. A proteção possessória, em regra, somente deve ser concedida na hipótese de se comprovar a posse, a qual deve ser compreendida como o exercício de fato, pleno ou não, de alguns dos poderes inerentes à propriedade, conforme a teoria objetiva de Ihering, esposada pelo direito brasileiro.

- Nos termos da Súmula 415 do STF, "servidão de trânsito não titulada, mas tornada permanente, sobretudo pela natureza das obras realizadas, considera-se aparente, conferindo direito à proteção possessória".

- "Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância [...]" (art. 1.208 do CC/2002), razão pela qual inexistente a servidão, não se pode considerar provado o esbulho.

Apelação Cível nº 1.0208.10.000745-8/001 - Comarca de Cruzília - Apelante: Valdecir de Souza Marcolino - Apelado: Luiz Antônio Vilela Reis - Relator: Des. José Marcos Rodrigues Vieira

ACÓRDÃO

Vistos etc., acorda, em Turma, a 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em negar provimento ao apelo.

Belo Horizonte, 11 de dezembro de 2014. - José Marcos Rodrigues Vieira - Relator.

NOTAS TAQUIGRÁFICAS

DES. JOSÉ MARCOS RODRIGUES VIEIRA - Trata-se de apelação cível interposta da sentença de f. 283/295-TJ, que, nos autos da ação de reintegração de posse ajuizada por Valdecir de Souza Marcolino em desfavor de Luiz Antônio Vilela Reis, julgou improcedente o pedido de proteção possessória formulado na inicial.

Na sentença, o douto Juízo de origem entendeu não preenchidos os requisitos do art. 927 do CPC, por não demonstrada a constituição de servidão de passagem em favor do autor sobre faixa do terreno do réu.

Inconformado, o autor interpõe apelação às f. 297/313-TJ, alegando, em síntese, que as provas produzidas nos autos comprovam o atendimento de todos os requisitos previstos no citado art. 927 do CPC, notadamente o uso contínuo e permanente da servidão de trânsito em apreço, que vem sendo utilizada há vários anos em razão do abandono e da falta de conservação da estrada municipal principal. Alega a inconveniência e a impossibilidade de utilização do outro caminho e que a sua mera existência não tem o condão de afastar o direito à proteção possessória de servidão contínua e aparente, como aquela que é objeto da discussão travada nestes autos. Invoca, neste ponto, aplicação do disposto na Súmula 415 do STF. Declara, ainda, que o réu, há muitos anos, aquiesceu com o uso provisório da estrada que passa por sua propriedade, autorização que jamais fora revogada, razão pela qual se tornou definitiva. Aduz que o esbulho possessório praticado pelo réu causou-lhe prejuízo, devendo as perdas e danos suportados ser incluídos na respectiva condenação. Finalmente, pugna pelo provimento do recurso com a reforma da sentença e o julgamento de total procedência do pedido formulado na inicial.

Contrarrazões às f. 316/326-TJ, por meio das quais o apelado sustenta que a passagem por trecho de sua propriedade se dava por mera liberalidade, o que não configura exercício de posse. Afirma que o terreno do autor não se encontra encravado e que há outro acesso igualmente cômodo. Assevera que não houve demonstração da constituição da servidão e pleiteia a manutenção da sentença.

É o relatório.

Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.

O ordenamento jurídico assegura ao possuidor, para proteção da sua posse, o manejo das ações possessórias. Nesse sentido, dispõe o art. 1.210, caput, do Código Civil, que o possuidor tem direito a ser mantido na posse, no caso de turbação, e de nela ser restituído, no de esbulho, podendo-se acrescentar, ainda, a hipótese de justo receio de ser molestado na posse, prevista no já citado art. 1.210, caput, in fine.

O Código de Processo Civil, por sua vez, visando a concretizar o direito material, dispõe, em seus arts. 920 e seguintes, sobre o procedimento das ações possessórias. Segundo o art. 927 do CPC, incumbe ao autor provar a sua posse, a turbação ou o esbulho, bem como a data destes, e, por fim, a continuação da posse, embora turbada, na ação de manutenção, ou a perda, na ação de reintegração.

Compulsando os autos, verifica-se que o apelante ajuizou a presente ação de reintegração de posse sob o fundamento de que possui servidão de passagem sobre estrada que passa sobre trecho de propriedade do apelado.

Como sói acontecer em casos tais, as partes suscitam os mais diversos fundamentos, desde a inconveniência do caminho público até o não encravamento do prédio dominante. Em razão disso, cabe fazer alguns esclarecimentos.

Inicialmente, não se confunde servidão de trânsito com direito de passagem forçada. Na lição de Caio Mário da Silva Pereira:

``Estas últimas (inadequadamente apelidadas de servidões legais) são criadas pelo legislador no propósito de instituir a harmonia entre vizinhos e compor seus conflitos. Originam-se do imperativo da lei, ao passo que as servidões são encargos que um prédio sofre em favor de outro, de forma a melhorar o aproveitamento ou utilização do beneficiário (Instituições de direito civil - Direitos Reais. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. 4, p. 275-276).

Esclarece Orlando Gomes:

``Não se confundem servidão e direito de vizinhança. A distinção é tão mais necessária que parte da doutrina classifica os direitos de vizinhança como servidões legais. Os direitos de vizinhança são limitações ao direito de propriedade impostas em lei a todos os prédios em razão de sua proximidade. São direitos recíprocos, que não supõem, portanto, diminuição de um prédio em favor de outro. As servidões privam o prédio serviente de certas utilidades, importando desvalorização patrimonial. Os direitos de vizinhança são limitados; as servidões, ilimitadas.

Importante também, do ponto de vista prático, é a distinção entre as servidões e os atos de tolerância. Não raro, o proprietário de um prédio permite que o vizinho pratique nele determinados atos sem ter, porém, a intenção de constituir em seu favor um direito. Esses atos de tolerância são eminentemente precários. Sua repetição não enseja servidão. A todo tempo podem ser proibidos. Jamais constituirão objeto de um direito, mesmo quando, aparentemente, possam dar a impressão de que se trata de uma servidão, como é, por exemplo, o caso do trânsito tolerado por simples cortesia (Direitos reais. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 321).

No caso, a controvérsia reside na existência de servidão de passagem, razão pela qual não há que se averiguar o encravamento do imóvel do apelante, como suscitado pelo apelado. Isso porque a servidão, via de regra, constitui-se por meio de acordo de vontades; enquanto o direito de passagem forçada - espécie de direito de vizinhança - só tem lugar quando se constatar que a única saída disponível adentra o imóvel vizinho.

Quanto ao pedido de proteção possessória da afirmada servidão, sabe-se, segundo a lição de Arnoldo Wald, que:

``Tratando-se de servidão aparente, cuja posse pode ser provada, cabe ao seu titular invocar, em seu favor, os interditos possessórios de reintegração, manutenção ou proibitório, sempre que se sentir cerceado no exercício dos seus direitos. Tais remédios não são utilizáveis se a servidão não for aparente, discutindo-se se há ou não posse das servidões aparentes, mas descontínuas. A jurisprudência tem entendido que existe posse de servidão de trânsito, embora descontínua, desde que haja sinais evidentes da sua existência, como, por exemplo, um portão entre imóveis vizinhos (RT 152/203, RF 115/115 e Súmula 415 do Supremo Tribunal Federal) (Curso de direito civil brasileiro - Direito das Coisas. 10. ed., São Paulo: RT, p. 171).

De igual forma, a doutrina de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:

``Com efeito, em princípio, o simples trânsito pelo prédio vizinho apenas indica tolerância por parte de seu proprietário, considerando-se como servidão não-aparente, pois a posse não é visualizada por sinais claros. Todavia, eventualmente a servidão de trânsito se converte em aparente. Para tanto, se a passagem for individualizada, sobretudo pela natureza das obras, converte-se em servidão aparente conferindo-se proteção possessória ao autor das obras (Súmula 415 do STF) (Direitos reais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 574).

No mesmo sentido, foi editada a Súmula 415 do STF, que assim dispõe:

``Servidão de trânsito não titulada, mas tornada permanente, sobretudo pela natureza das obras realizadas, considera-se aparente, conferindo direito à proteção possessória.

Ou seja, a passagem pelo terreno do vizinho pode transmudar-se em servidão de passagem, principalmente se verificado que o dono do prédio dominante realizou obras para abrir e conservar o caminho. Isso porque a realização de obras é forte indício da efetiva existência da servidão, ainda que não titulada, já que conservá-la é um dos deveres do respectivo dono (arts. 1.380 e 1.381 do CC/2002).

Assim, apenas as servidões aparentes são suscetíveis de proteção possessória ou de serem usucapidas. Nisso reside a utilidade da classificação dos institutos e o acurado exame das circunstâncias fáticas, o que é corroborado por Orlando Gomes ao dizer que

"se lhes aplicam regras diferentes quanto à sua constituição, execução e extinção. Se é certo que todas elas [as diversas espécies de servidões] podem ser constituídas por acordo de vontades, somente as servidões contínuas e aparentes se estabelecem pela usucapião. As servidões descontínuas extinguem-se pelo não-uso durante certo lapso de tempo, o que não ocorre, obviamente, com as servidões contínuas" (ob. cit, p. 322-323).

No caso sob julgamento, ainda que mais cômoda a passagem do autor pela propriedade do apelado, consta dos autos a informação de que tal estrada fora aberta pela genitora do réu há muitos anos (conforme informado pela testemunha Terezinha de Jesus Vilela - f. 256-7-TJ), mas não há indício sobre quem realizava as necessárias obras de conservação.

Ao contrário, a prova testemunhal é toda no sentido de que a estrada estava abandonada e sem qualquer utilização, até que o antigo proprietário do imóvel do autor, em razão da realização de obras na estrada principal, solicitou e recebeu permissão provisória para utilizar a estrada, como se vê do depoimento pessoal prestado pelo réu às f. 262-263/TJ, corroborado pela testemunha Antônio Tadeu Silva (f. 260/261-TJ).

De lá para cá, é certo que a estrada ainda ficou abandonada por outros períodos, tanto que os proprietários de outras fazendas da região utilizam e escoam suas respectivas produções pela estrada principal, novamente como ressaltado pelas testemunhas Terezinha de Jesus Vilela (f. 256/257-TJ) e Antônio Tadeu Silva (f. 260/261-TJ), bem como pelo réu Luiz Antônio Vilela Reis (f. 262/263-TJ).

Nesse contexto, pelo que se depreende do conjunto probatório, o apelante utilizava a estrada que passa pela propriedade do apelado sem qualquer oposição, contudo, por mera permissão. Repita-se que não foi demonstrada a realização de nenhuma obra por parte do recorrente para fins de abertura da passagem ou mesmo de conservação.

Ora, é cediço que "não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância [...]" (art. 1.208 do CC/2002), razão pela qual a simples passagem pela propriedade de outrem não configura servidão de passagem, independentemente do tempo transcorrido.

Frise-se que, para que se conceda proteção possessória referente a servidão de trânsito não titulada, deve-se demonstrar que foi tornada permanente, principalmente, conforme a Súmula 415 do STF, pelas obras realizadas.

Na hipótese em exame, ante a ausência de provas em sentido contrário, o que se observa é que o caminho foi aberto há muitos anos pelos genitores do apelado, mas deixou de ser conservado ante a pouca utilização, chegando a permanecer abandonado por diversos períodos, o que demonstra sua descontinuidade.

Logo, não se pode atribuir ao apelante os ônus de dono da servidão (arts. 1.380 e 1.381 do CC/2002).

Nessa linha de raciocínio, o simples fato de ter sido disponibilizada a passagem não gera posse ou enseja proteção possessória, uma vez que se trata de mera liberalidade do apelado. Nesse sentido:

``Ação possessória. Utilização de acesso localizado dentro da propriedade rural do réu. Ato de tolerância. Servidão de passagem não comprovada. Passagem forçada. Descabimento. Existência de outro acesso à via pública. Posse não demonstrada. Improcedência da ação. - Tratando o caso dos autos de ação de reintegração de posse, deve ser verificada a ocorrência dos pressupostos elencados no art. 927 do CPC. - Não constando ter sido constituída servidão de passagem e não tendo sido demonstrado que os imóveis são encravados, fica afastada a hipótese de posse dos autores sobre o acesso localizado dentro da propriedade do réu. - A servidão tem como característica a impresumibilidade, ou seja, deve ser provada por quem a alega, e, na dúvida, decide-se contra a existência da servidão. "Na dúvida, a decisão é pela liberdade do prédio porque o domínio é de sua natureza livre, e a servidão, limitando-o e onerando-o, é exceção à regra, e como tal não se presume constituída e existente". - O uso de passagem particular por ato de liberalidade do proprietário de imóvel rural não induz posse. - A prova produzida demonstrou que os autores vinham se utilizando da estrada existente no imóvel do réu, para acesso a seus terrenos, por ato de mera tolerância, de mera cortesia, portanto, sem força para gerar direito. - Existência comprovada de possibilidade de os autores terem acesso à via pública, sem ter que adentrar na propriedade do réu (TJMG - 14ª Câmara Cível - Relatora: Des.ª Heloísa Combat - Apelação Cível nº 476.025-0 - j. em 05.05.2005).

``Reintegração de posse. Servidão de trânsito. Não caracterização. Atos de mera tolerância. - Extrai-se dos conceitos de utilidade, e não presumibilidade da servidão que, na hipótese em comento, não se está diante dessa modalidade de direito real sobre a propriedade alheia, mas sim de mera liberalidade por parte do apelado, que, de 1997 a 2001, permitiu que os apelantes se utilizassem do caminho ora reivindicado, enquanto eram realizadas obras na estrada principal ou `real. Não se pode perder de vista que, nos termos do art. 497 do CC/16, os atos de mera permissão ou tolerância não induzem posse. - O requisito da utilidade, outrossim, não foi demonstrado, mesmo porque há passagem principal, por anos utilizada por todos antes do desvio efetivado pelo recorrido, não se admitindo impor a este a restrição à sua propriedade, em prol de mera comodidade dos recorrentes (TJMG - 8ª Câmara Cível - Relatora: Des.ª Albergaria Costa - Apelação Cível nº 2.0000.00.455831-8/000(1) - j. em 01.12.2004).

Assim, deve ser mantida a sentença que rejeitou o pedido de proteção possessória formulado em relação à servidão não aparente, decorrente da mera tolerância do apelado.

Com tais fundamentos, nego provimento ao apelo para manter incólume a sentença recorrida.

Custas recursais, pelo apelante.

Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Aparecida Grossi e Otávio de Abreu Portes.

Súmula - NEGARAM PROVIMENTO AO APELO.

Data: 23/02/2015 - 09:48:49   Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico - 20/02/2015
Extraído de Sinoreg/MG

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